D.Odilo P. Scherer (*) para O Estado de S.Paulo
Escrevo estas linhas no dia de São Francisco de Assis, santo muito estimado por católicos e não católicos.
Alma sensível, coração límpido e sábio, poeta do "irmão Sol" e da "irmã Lua", desprendido dos bens deste mundo e mendigo voluntário, mas rico por ter encontrado "meu Deus e meu tudo", Francisco também se fez "irmão universal" e quis ser "instrumento da paz" de Deus para todos. Uma de suas mais insistentes recomendações aos confrades, que se agregaram a ele no mesmo ideal, referia-se à vida fraterna, com todas as consequências que isso traz.
Por esses e por outros motivos, sua medieval e pequena Assisi se apresenta ainda hoje como um dos lugares mais encantadores da Itália e continua a atrair todos os anos multidões de peregrinos, turistas e curiosos de todo o mundo. Lá, a memória de São Francisco convida a reviver a experiência que ele próprio viveu intensamente, irradiando paz e bem.
Não foi por outro motivo que o papa João Paulo II, em 27 de outubro de 1986, se reuniu em Assis com líderes de várias religiões para um encontro de diálogo sobre a paz.
Transcorria o Ano Internacional da Paz, celebrado pela Organização das Nações Unidas (ONU), e João Paulo II queria destacar a dimensão espiritual da paz e refletir, com os representantes das religiões, sobre a responsabilidade comum de orientar as crenças religiosas pessoais e comunitárias para a construção efetiva da paz; o papa lamentava que, infelizmente, a religião era instrumentalizada com frequência para gerar violência e alimentar conflitos.
Sem cair no sincretismo, nem relativizando as crenças de cada religião, o papa João Paulo II quis mostrar que era possível as religiões conviverem em paz e serem instrumentos de edificação da concórdia nas comunidades e entre os povos.
Os anos seguintes comprovaram a importância dessa intuição e como, de fato, é preciso que todas as religiões condenem com firmeza o terrorismo e se oponham com lucidez e coragem ao uso ideológico da religião, transformada em fonte de ódio e violência - porque isso seria trair a sua finalidade genuína e constituiria grave ofensa a Deus.
Ninguém honra a Deus fazendo violência contra o próximo em seu nome!
Passados 25 anos desde aquele memorável evento, no próximo dia 27 de outubro o papa Bento XVI vai repetir o encontro com líderes religiosos de todo o mundo para manter vivo o "espírito de Assis". Também estarão presentes homens de ciência e cultura, além de personalidades que se definem como não crentes. Todos irão ao túmulo do pobrezinho de Assis como "peregrinos da verdade, peregrinos da paz" - esse será o lema do encontro.
O peregrino, por vezes, avança com fadiga, mas segue caminhando com alegria e esperança, fascinado pela meta do seu peregrinar... As pessoas de fé sabem que todas as metas de peregrinações neste mundo são simbólicas e o coração intui que o termo do peregrinar está além, muito além do ponto a que já chegou.
O homem é peregrino da verdade, do bem, do belo e da paz; e continua a caminhar, a perscrutar o horizonte da existência, ávido de luz, ansioso por enxergar e encontrar repouso para suas buscas.
A proposta do novo encontro de Assis é a busca sincera da verdade, na abertura atenta ao próximo. Em outros tempos, o "próximo" estava geograficamente perto; com a globalização, a humanidade inteira transformou-se em sujeito de convivência. No entanto, como constata o papa Bento XVI, se é verdade que a globalização nos avizinhou mais, ela não nos fez mais fraternos (cf Caritas in Veritate n.º 19).
É preciso ir além do viver uns ao lado dos outros, para conviver com os outros, abrindo espaço no coração para que os nossos semelhantes possam tomar parte de nossas alegrias, preocupações e esperanças.
A religião é caminho para o encontro do homem com o bem, o amor e a verdade - com o mistério de Deus. Se ela cumprir esse papel, também ajudará a edificar a paz. Mas se, ao contrário, a religião não leva ao encontro com Deus, ou faz de Deus um objeto de manipulação dos desejos e dos projetos humanos, ela se desvia de sua finalidade e pode pôr em risco a paz.
Nenhuma religião está isenta desse risco; por isso, as pessoas de religião são convidadas a se deixarem purificar sempre mais pela verdade, a exemplo de São Francisco de Assis, transformando-se em instrumentos da paz. O desprezo à verdade leva a passar por cima da dignidade das pessoas, à soberba obcecada, ao triunfo da violência. E tudo isso está muito longe de Deus.
O papa Bento XVI, falando sobre o tema, convidou os líderes de religiões a prosseguirem nos esforços comuns pela paz. Desde o primeiro encontro, em 1986, muitas iniciativas de reconciliação e de paz já ocorreram. No entanto, também houve muitas ocasiões perdidas e retrocessos! Velhos conflitos, ocultos como brasa debaixo da cinza, explodiram novamente em terríveis atos de violência e pareceram sufocar a possibilidade da paz.
São Francisco de Assis, homem de paz, convidava a colocar Deus no centro do viver humano. Assim fazendo, ele próprio podia amar com liberdade e desapego cada criatura, valorizar cada pessoa, ir ao encontro do leproso e do pobre, falar com o lobo e com o ladrão, dialogar com aqueles que, antes, queria combater...
O campo onde prospera o desejado fruto da paz precisa ser cultivado sem parar; é tarefa constante e nunca está plenamente realizada: a edificação da convivência pacífica entre os homens requer o testemunho e o esforço comum de todos aqueles que buscam a Deus de coração sincero.
(*) Cardeal de São Paulo
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