quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Livro "O Ladrão no Fim do Mundo"

De como a seringueira foi parar na Ásia e acabou-se uma festa amazônica

Revista Valor

Um caso clássico de biopirataria povoa o imaginário de gerações de brasileiros sensíveis: o contrabando (ou transferência) de sementes de seringueira da Amazônia para a Ásia, via Londres, que esvaziou Manaus e Belém e deu ao império britânico o monopólio de uma matéria-prima fundamental para a economia da época. Não foi o primeiro caso nem será o último - a exuberante diversidade da Amazônia atrai múltiplos desejos e teorias, conspiratórias ou não. Já foi objeto de muitos estudos acadêmicos e um deles tornou-se exemplar: "A luta pela borracha no Brasil" (Editora Nobel, 1989), do brasilianista americano Warren Dean (1932-1994). Agora, volta à tona, em outro estilo, pelas mãos de Joe Jackson, jornalista que, neste "O Ladrão no Fim do Mundo", faz um retrato colorido do principal autor do furto: o inglês Henry Alexander Wickham.

Jackson é apresentado como um jornalista investigativo que trabalhou por 12 anos no jornal "The Virginian Pilot", de Norfolk, Virgínia, EUA, e já tem quatro livros em seu acervo. Vale perguntar: o que leva um repórter de um jornal regional americano a se interessar por temas como esse? Honestamente, ele mesmo responde, dizendo que ganhou o livro de bandeja quando conversava com amigos acadêmicos e um deles perguntou: "Por que você não escreve sobre Henry Wickham, que contrabandeou 70 mil sementes de seringueira da Amazônia e destruiu sua economia?" Ele escreveu. Optou por uma narrativa aventuresca - boa de ler -, em que se misturam fatos, ficção, sonhos, delírios. Não faltam ousadia, doenças tropicais, pragas agrícolas, insetos gigantes, cobras terríveis - nem tinturas anticolonialistas ou antiimperialistas.

Wickham (1846-1928) era um jovem de classe média na Londres de meados do século XIX. Sem rumo, só parecia gostar de uma coisa: desenhar. Resolveu aventurar-se pelo mundo em busca do que fazer. Rodou por Nicarágua, Venezuela, Austrália, ilhas dos Mares do Sul, Honduras Britânicas (Belize). No meio do caminho estava o Brasil, aonde chegou pela primeira vez em 1870, vindo da Venezuela. Fixou-se (entre idas e vindas) em Santarém, no Pará, no cruzamento Tapajós-Amazonas. Tentou plantar muitas coisas, mas acabou se concentrando na "ciringa". Por canais semidiplomáticos, enviou desenhos da folha e do fruto da Hevea Brasiliensis para o Real Jardim Botânico de Kew, cidade próxima a Londres, onde pesquisadores ingleses (tal como seus pares europeus) buscavam dar suporte a uma "botânica econômica" de que o Império precisava. Já tinham conseguido, por sinal, contrabandear a cinchona (origem da quinina, única arma contra a malária) da Bolívia e Peru para Ceilão e Cingapura.

Entre trancos e barrancos (não era um especialista), Wickham ganhou a incumbência dos chefes britânicos para coletar e mandar as sementes de seringueira (por via das dúvidas, os chefes enviaram também um botânico para fazer o serviço paralelo). Teve êxito. Em meados de 1876, levou para a Inglaterra 50 cestos com 70 mil sementes. Dourou a pílula, recobrindo-a de mistério e fantasia. Passou incólume pela alfândega do porto de Belém, recorrendo a dissimulações e despistamento. Muitos anos depois, em 1906, de volta a Londres, não resistiu à bazófia. Disse que as sementes foram embarcadas às escondidas, "sob o nariz de uma canhoneira, que teria explodido nosso barco se seu comandante suspeitasse do que estávamos fazendo". Jackson duvida dessa ameaça e Warren Dean (em que o autor se baseia em várias passagens do livro) vai além. "Não havia nenhuma lei brasileira contra a exportação de sementes, mas essa versão virou mito invencível, porque o desejo de identificação com a esperteza era forte entre os servidores do império", afirmou Dean. "É lamentável que Wickham tenha conseguido a fama por se apresentar como ladrão."

Só vingaram 3,6% das sementes contrabandeadas pelo "espião de Kew". Mas, lá cultivadas, e transferidas para o Ceilão e a Malásia (onde se adaptaram perfeitamente), revolucionaram o comércio mundial da borracha de cultivo. Trinta anos depois, Manaus e Belém (cujo apogeu durou de 1880 a 1910) entraram em declínio. Sumiram luxo, ostentação, tecidos e perfumes importados. O Império britânico tornou-se monopolista nisso também. "Ainda hoje, os historiadores não sabem como classificá-lo; foi um patriota ou um oportunista, um visionário ou um fanfarrão de muita sorte?", pergunta-se Jackson.

Algoz da borracha brasileira, herói para o Império (que lhe concedeu o título pré-nobre de Sir), Wickham conseguiu sobreviver aos percalços das florestas em que pisou - circunstância que Jackson valoriza. Tanto é assim que dedica o capítulo final (e meio prólogo) a outros empreendedores americanos que "ousaram enfrentar a selva". Refere-se particularmente a Henry Ford, que, entre 1928 e 1945, tentou produzir borracha na Amazônia, buscando garantir suprimento e fugir do monopólio inglês, mas foi derrotado pela selva.

O mesmo aconteceu, mais tarde, nos anos 1960, com o milionário Daniel Ludwig, que - lembra Jackson en passant - sonhou implantar uma fábrica de celulose no Amapá. Esqueceu-se, porém, de mencionar um terceiro, tão ou mais famoso: o americano Percival Farquhar (1864-1953). Combinação de empreendedor, financista e especulador, Farquhar se meteu em dezenas de negócios no Brasil, de ferrovias a mineração (criou o embrião da Vale do Rio Doce) - e construiu, de 1907 a 1912, a notória e trágica Madeira-Mamoré. Jackson roça o tema em uma nota: lembra que "o jornalista e especulador americano George Church" tentou construir a ferrovia à margem do Rio Madeira, em 1870. Mas ficou nisso. Na verdade, Church, engenheiro militar e escritor bissexto, fez duas tentativas frustradas. Só depois é que Farquhar apareceu. Todos foram derrotados pela selva.

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