sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Os encerrabodes

Bellini Tavares de Lima Neto (*)

Dinheiro é bom, mesmo. Ainda que descontando todos aqueles alertas e cercos morais de que não se deve viver em função do dinheiro, que não se deve virar escravo do dinheiro, que dinheiro pode gerar discórdia entre as pessoas, apesar de tudo isso, a verdade é que dinheiro é bom, sim. 
Por menos que se vá vender a alma ao capeta em troca de dinheiro, é para lá de ótimo, por exemplo, entrar num restaurante desses que capricham em tudo, estacionamento, manobrista, comida, bebida, sobremesa e cafezinho, tudo de primeira qualidade. Nem é preciso ter por perto aqueles garçons que fazem marcação individual a qualquer suspiro ou virada de cabeça, mesmo que seja para dar uma espiada discreta na mesa do lado. E o que dizer de entrar num desses “shopping center” sofisticados e olhar as lojas sem aquele receio de que, a qualquer momento, algum segurança vai nos colocar para fora por excesso de atrevimento? Os exemplos são intermináveis, mas o que se pode afirmar sem medo de errar é que dinheiro é bom de verdade. 

Mas, como tudo, tem lá os seus desconfortos. O sujeito que tem a burra forrada anda sempre preocupado em tomar conta daquilo. E isso porque, de acordo com um antigo ditado, nem tão popular dado o seu conteúdo, “dinheiro não aceita desaforo”. Não pode perder o tino, descuidar, ficar meio aéreo porque o danado logo se sente tentado a se bandear para outras freguesias. E aí, é duro de voltar, isso quando volta. Dinheiro quando tem dono é muito exigente com o amo e senhor. Por isso, apesar de todo o lado bom, o que ninguém nega, ser dono do capital nem sempre é tarefa muito simples. Mas, ainda como tudo na vida, existe um jeito, um atalho para contornar esse incômodo. É só ser, apenas, o beneficiário do dinheiro e não o dono. Aquele que só gasta, só aproveita, sem ter que ser o dono, não vai precisar se preocupar com as esquisitices do vil metal e suas mazelas em relação ao patrão.

Mas, que dinheiro é esse que não tem dono? É dinheiro roubado? Bem, essa também é uma hipótese, mas muito arriscada e trabalhosa. Existe um outro dinheiro sem patrão: o dinheiro público. Afinal, o que é o publico? O que é o povo, a população, a sociedade? Puro abstracionismo, coisa meio conceitual a que se lança mão sem muito ou nenhum compromisso já que, na prática, não vai haver reação alguma. O povo, essa figura genérica, meio irreal, quase fantasiosa, não cobra nada, não exige nada. Sobretudo aqui por estas bandas do Planeta-Brasil, ainda tem o fato de que ninguém é povo, nem população nem coisa alguma. A menos que seja para levar uma vantagenzinha. Fora disso, chamar alguém de povo pode ofender. Ora, se ninguém é povo, público, população esse chamado dinheiro público é, exatamente, o dinheiro sem patrão. Logo, é dinheiro dócil, sem exigências nem ranhetices.

Bem recentemente, os jornais andaram divulgando que autoridades resolveram criar embaraços à livre circulação, nas escolas, de um livro destinado a crianças chamado “Caçadas de Pedrinho”. Seu autor é um cidadão, falecido em 1948, que atendia pelo nome de Monteiro Lobato. Tinha o hábito de escrever livros para crianças. Mas, como se trata de um sujeito que viveu bem antigamente, esses livros todos foram escritos lá pelos anos 1920, 1930, 1940. Como o homem era apenas um escritor e não um futurólogo, ele escreveu usando elementos que existiam no seu tempo. Linguagem, costumes, personagens, lugares, situações, tudo lá do tempo em que perambulou pelo confins deste planeta. Como todo mundo sabe, já que a televisão se incumbiu de divulgar as coisas que o sujeito escreveu, ele criou um grupinho de pessoas que viviam num sitio. Eram um casal de primos, ambos netos de uma velha senhora muito sabida que tinha por fiel companheira uma negra velha cozinheira e meio irmã da velha sabida. E ainda havia uma boneca falante, um sabugo de milho metido a sábio, um porco comilão, um burro falante, um rinoceronte além de outros que apareciam e desapareciam. Todos viviam num verdadeiro paraíso naquele sitio. A negra velha não era nem nunca foi exceção. A criançada a amava tanto quanto amava a velha sabida. Para defender a velha negra, essa criançada se meteu em incontáveis aventuras enfrentando monstros da mitologia grega, vilões de contos de fada e até o dragão do São Jorge. Mas, apesar disso tudo e como os jornais andaram dizendo, o tal escritor foi considerado racista por conta de certas expressões que eram usadas lá nos tempos de vivo dele e, assim, andaram querendo censurar seus livros ou só permitir que fossem lidos se houvesse um adulto ao lado para explicar tudinho.

Nem é preciso dizer que, felizmente o mundo veio abaixo e a idéia foi sepultada ainda quente. Não deixaram nem o cadáver esfriar. E uma porção de gente graduada e capacitada achou a proibição uma cretinice sem tamanhos, como se tivesse saído de uma torneirinha de besteiras. Portanto, não é preciso dizer nada sobre isso pois está tudo nos jornais. O interessante, no entanto, é que a tertúlia começou com um parecer de um CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO - CNE que o aprovou por unanimidade. A autoria do parecer é de uma pessoa que ocupa o cargo de conselheiro na CÂMARA DE EDUCAÇÃO BÁSICA do CNE. Trata-se de um professor do DEPARTAMENTO DE ADMINISTRAÇÃO ESCOLAR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, onde exerce a coordenação do PROGRAMA DE AÇÕES AFIRMATIVAS e do NUCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS SOBRE RELAÇÕES RACIAIS E AÇÕES AFIRMATIVAS. O parecer, por sua vez, nasceu de uma denuncia formulada por um servidor do governo que faz mestrado na Universidade de Brasília, na área de Gênero/Raça/Etnia e Juventude. A denuncia do servidor, baseada em expressões contidas no livro e que teriam a conotação racista, foi submetida à apreciação de diversos setores federais do Ministério da Educação: Chefia do Gabinete do Ministro da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, Coordenação de Material Didático do MEC e Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Cumprido esse périplo, a pena acusatória chegou às mãos do Ministro da Educação que mandou arquivar, talvez com receio de que, depois da gripe do frango e a do porco, tivesse chegado a do asno ou a da mula, com chances de se alastrar.

A democracia social e racial em que viviam os habitantes do Sitio do Pica-pau Amarelo flagrantemente destoavam dos costumes da primeira metade do século XX. As expressões utilizadas para designar os negros, alusão aos lábios grossos, à carapinha, à pele preta, nada disso tem qualquer significado diante das relações humanas estabelecidas entre aquela gente que convivia, brigava e ficava de bem como em qualquer ambiente social. Mas, isso tudo já foi ampla e convenientemente esclarecido por quem de direito e mérito. O que, em meio a isso tudo, me deixou um pouco confuso foi a quantidade de órgãos, divisões, secretarias e gabinetes que se envolveram no assunto. Isso quer dizer que todos eles existem e, obviamente, são remunerados para exercer o que lá exercem. Se é que se possa imaginar que algo assim fosse produzido na iniciativa privada, os autores seriam dois ou três sujeitos no máximo, encostados em um daqueles departamentozinhos de projetos novos que, como se sabe, são a ante-sala do pé no traseiro. E, ao elaborar uma coisa dessas, iam acelerar e muito o pé nos fundilhos. Mas, quando se trata de iniciativa pública, aparece essa lista de nomes empolados, de cargos sofisticados, de gente de nariz emproado posando de intelectual. E tudo isso para dizer que Monteiro Lobato era racista.

Dá, agora, para entender o que é o tal dinheiro sem patrão?

(*) Advogado , avô recente e morador em S. Bernardo do Campo (SPO). Escreve para o site O Dia Nosso De Cada Dia - http: blcon.wordpress.com.

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