Dificilmente existe alguém que nunca tenha ao menos ouvido falar de uma célebre peleja entre dois violeiros e repentistas conhecidos como Cego Aderaldo e Zé Pretinho. É coisa de folclore, já virou lenda a disputa entre os dois artistas populares que, de acordo com o que se conta, terminou com o Zé Pretinho, cantador afamado, correndo humilhado pelo Cedo Aderaldo que também não lhe ficava atrás em matéria de fama. Depois de se ofenderem em versos e ao som da viola, Zé Pretinho teria lançado um desafio para Cego Aderaldo responder. Tudo em versos. O desafio do Pretinho era o “é um dado, é um dedo, é um dia, é um dia, é um dedo, é um dado”. O desafio era para que o Cego respondesse terminando com esse mote. E o Cego respondeu todas as vezes que foi desafiado. Então, se inverteu a coisa. O Cego é que lançou o seu mote desafiando Pretinho a responder. O mote do Cego era “pagará a paca cara quem a paca cara compra”. Pretinho, então, tentou e se deu mal o que consagrou ainda mais o Cego Aderaldo. Riquezas da cultura popular de um país que deveria estar em outras esferas.
A peleja inteira ganhou registro e, como quase tudo, hoje em dia, pode ser facilmente encontrada na “internet”. É o lado bom da tecnologia que, como tudo na vida, também sua banda podre. Consta que, em meio à peleja, o Cego Aderaldo teria cantado um verso nos seguintes termos: “não há quem cuspa prá cima que não lhe caia na cara”. Coisa sábia. Se alguém duvidar, é só fazer a experiência. Vive acontecendo, sobretudo para quem insiste em ignorar o principio da ação e reação, conhecido como uma das Leis de Newton: “a uma ação sempre se opõe uma reação igual”. No fundo, é uma forma um pouco mais refinada de se dizer o que disse o Cego Aderaldo no meio de sua peleja. E há os que dizem a mesma coisa de um outro jeito, a história do “aqui se faz, aqui se paga”. A grande diferença entre a lei de Newton e as demais leis que entopem o Brasil é que essa não há como desrespeitar, como passar por cima. É como a Lei da Gravidade e outras que não aceitam o jeitinho de jeito algum. Não há quem cuspa prá cima que não lhe caia na cara.
Recentemente a banda podre da “internet” fez circular um comentário ou manifestação de uma mocinha do Sul do país ofendendo os nordestinos. Confesso que não li o que a mocinha disse, apenas li o que disseram que a mocinha disse. E, como sempre acontece nesses momentos, uma porção de escandalizados começou a desancar a tal mocinha que ganhou seus minutos de fama, mesmo que não fosse essa a sua intenção, o que, cá entre nós, duvido muito. Foi uma grita geral. Houve até um parlamentar, filiado a um partido que ainda ostenta a bandeira de uma ideologia extinta, que ganhou meia página de um grande jornal para exemplificar as diversas demonstrações históricas e respeito que sulistas tem em relação a nordestinos. Em resumo, a mocinha foi alçada a condição de racista, preconceituosa, separatista ou qualquer outro tipo de adjetivo que possa qualificá-la como alguém que levantou publicamente um tema absurdo, sem procedência e sem precedentes.
O curioso é que se fosse possível colocar as palavras da mocinha contra um espelho para que se refletisse exatamente o contrário do que ela andou dizendo, é possível que se encontrasse, em letras garrafais ou em alto e bom som, algo que se tornou mote de uma formula de governo que vem dando ótimos resultados há quase uma década. Trata-se da disputa que se instalou no planeta-Brasil entre “nós e eles”. Pobres contra ricos, elites contra povo, negros contra brancos, nordestinos contra sulistas, essa peleja tem rendido altos dividendos aos que jogam com ela. Sobretudo porque nem mesmo se consegue definir muito bem o que sejam os “nós” e os “eles”. “Eles” são simplesmente os que porventura se posicionem contra “nós”. Mas nada impede que quem foi “eles” até pouco tempo, se transforme em “nós” sem o menor esforço ou cerimônia. É uma alquimia espantosa.
Essa rivalidade infeliz entre sulistas e nortistas não é nenhuma novidade. Tal como não é novidade a diferença estúpida entre negros e brancos, homens e mulheres e por aí afora. E sempre será possível argumentar que o que existe hoje é o resultado natural do que sempre aconteceu, com a diferença é que agora se está reagindo ou se alternando as posições. Não deixa de ser um rasgo de inteligência. Se ontem tínhamos uma parte da população tripudiando sobre a outra e se considera isso algo condenável, agora invertemos os pólos e, então? Mudam-se as moscas. Mas, tudo continua rendendo os juros desejados. Quem sabe dentro de algum tempo as coisas se invertam novamente e voltemos à fórmula anterior.
Agora, por uma questão de justiça, que tal se deixarmos de condenar a mocinha?
Afinal, ela é a prova de que “não há quem cuspa prá cima que não lhe caia na cara”.
E Aderaldo era cego, hein...
(*) Advogado , avô recente e morador em S. Bernardo do Campo (SPO). Escreve para o site O Dia Nosso De Cada Dia - http: blcon.wordpress.com.
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