quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Schadenfreude

Sírio Possenti (*)

"São cada vez mais numerosos os ensaios sugerindo que, se queremos entender o Brasil, temos que começar a olhar para o futebol. Alguém aí leu O negro no futebol brasileiro? Então, ao trabalho!

Alguns estudiosos têm analisado o comportamento das torcidas (as tais organizadas são bem complicadas!). Invictus mostrou como um governo ou um país pode se valer do esporte para mobilizar forças rumo a um objetivo político (muito mais explicitamente que o "Pra frente Brasil" de 1970, até). Quem tem ouvido as patriotadas do Dunga? Quem se liga nas metáforas do Lula pode começar a entender alguma coisa. Gostar é outro departamento, mas só o mais reles preconceito pode avaliar que metáforas futebolísticas são inferiores a outras. Por exemplo, às econômicas.

Foi por isso que, há algumas semanas, falei do corinthianismo, ou do anticorinthianismo. A meu ver, trata-se de um fenômeno social que merece ser analisado. Volto ao tema, um pouco à margem de meus assuntos habituais. Se bem que, na semana em que falei desse assunto, meu tema era o incipit de Moby Dick. Coisa de que os mui letrados torcedores anticorinthianos não se deram conta!

Tem de tudo nesse mundo. Masoquistas e sádicos, por exemplo (O sádico diz pro masoquista: - Me bate! E o masoquista: - Não bato!). E não me refiro às opções sexuais. Refiro-me ao prazer em geral. Aliás, tenho em mente, sobretudo, os prazeres que podem ser públicos.

Alguns sentem prazer porque fizeram coisas consideradas legais, ou porque as fizeram seus amigos ou familiares. Mas tem gente que (só) goza quando os outros se estrepam. "Um homem, correndo pela rua, tropeça e cai. Os transeuntes riem". Está em Bergson, O riso. O filósofo está tentando explicar uma das mais óbvias manifestações de prazer, exatamente o riso.

Querem um exemplo concreto, futebolístico? Neymar cobrando aquele pênalti contra o S. Paulo, com a tal paradinha, Rogério caindo atabalhoadamente: muita gente nem curtiu a habilidade e a segurança do atacante; só curtiu a queda de Rogério.

Os torcedores gaúchos são mais antigremistas e anticolorados do que gremistas e colorados. Os mineiros são mais antiatleticanos e anticruzeirenses do que atleticanos e cruzeirenses. Muitos brasileiros são antes de tudo antiargentinos. Usual, comum, típico.

Parêntese: Lá como cá? Segundo a Folha de 22/5/2010, o presidente do Milan disse que torcia pela Inter contra o Bayern, porque sua vitória colocaria quatro times italianos na próxima edição do torneio. Mas Mourinho, técnico da Inter, afirmou quem "os italianos amanhã torcerão pelo Bayern. Os do Milan e da Juventus não estarão conosco. Os do Real não estão tristes, porque o Barcelona não joga a final. É nossa cultura". Fim do parêntese.

Nesses estados, a paixão futebolística se divide fundamentalmente entre os dois grandes. Claro, há os cinco torcedores do América e os antigos torcedores do Renner. Mas o grosso da tropa está em um desses dois lados.

No Rio não é bem assim. Os grandes são quatro - ou eram. E todos têm uma torcida notável, embora vascaínos e flamenguistas sejam mais numerosos. Os flamenguistas, dizem, são a maior torcida do país.

Em S. Paulo, o fenômeno do Rio se repete: todos torcem para um dos grandes times e cada um desses grandes times tem um adversário especial, o que mais gosta de vencer. Para os corinthianos, ora é o Palmeiras, ora o S. Paulo, dependendo da quantidade de partidas decisivas em determinado período. Nos últimos cinco ou dez anos, os corinthianos curtem mais vencer o S. Paulo do que outros times. Antigamente, no tempo de Pelé, o grande adversário era o Santos - que está voltando ao páreo.

Mas o que acontece com as outras torcidas? Pergunte a um jogador ou a um torcedor do Palmeiras qual é seu principal adversário. E aos do São Paulo. E aos do Santos. E a um jogador ou torcedor do Mirassol. Até mesmo a um jogador do time da minha rua, aqui no Barão Geraldo. Todos dirão que o adversário que eles mais gostam de vencer é o Corinthians. Aliás, essa era também a posição do Pelé, que jogou contra todos os times do mundo, em todos os continentes. Mas ele gostava mesmo era de vencer o Corinthians. Até por isso ele foi muito melhor que o Maradona, que nunca jogou contra o Corinthians. Maradona provou de tudo, dizem. Menos vencer o Corinthians, eu digo.

No Rio Grande do Sul e em Minas, em Pernambuco e no Pará, pode-se descobrir em que década qual dos clubes ganhou mais títulos. Todos os gaúchos (bem, quase todos) que começaram a ver futebol no tempo do Inter de Falcão e companhia se tornaram colorados. Os que começaram a ver futebol na década seguinte são quase todos gremistas. Por quê? Porque a meninada quer torcer para o time que mais vence.

Se o Santos continuar jogando o futebol que jogou no primeiro semestre, a maior parte dos que hoje têm de cinco a dez anos vai ser santista. O Santos pode roubar futuros torcedores dos outros clubes do estado de S. Paulo. De todos? De quase todos, eu acho. Se o S. Paulo ou o Palmeiras ficarem vinte e três anos sem título vão ter uma torcida do tamanho da do Juventus. Mas a do Corinthians cresceu mesmo foi na longa fila interrompida em 1977. Até o Pelé, como disse, que surgiu exatamente naquela época, gostava mais de vencer o Corinthians do que de vencer qualquer outro clube (ou seleção, desconfio).

Aqui onde moro, nos dias de jogos do Corinthians sempre há foguetório: se ganha, são os corinthianos que fogueteiam. Se perde, os outros comemoram muito. Quando os outros perdem, não há queima de fogos. Ninguém liga. E os cachorros podem ficar em paz - uma vantagem extra!

Não estou dizendo que deve ser assim. Ou que é bom ou ruim que seja assim. Estou dizendo que é assim. É o que leio nos jornais e ouço nas rádios e TVs, de jornalistas e de jogadores. E é o que vejo nas ruas e nos bares, nos dias e nas noites de futebol. Os sociólogos e psicólogos que expliquem.

Pode ser que corinthianos sejam masoquistas. Não sei mesmo. Os outros certamente padecem de Schadenfreude, o "sentimento de alegria ou de prazer decorrente do sofrimento ou infelicidade dos outros", dizem as enciclopédias (a "doença" deles tem nome chique!). Schadenfreude é marca dos outros torcedores. Humano, demasiado humano".

(*) Professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp (SP)

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