Evandro Pelarin (*)
A liberdade é o bem mais precioso do ser humano. Porém, ela nunca foi algo natural, como o vento ou a chuva. Na história da humanidade, a liberdade sempre foi o resultado de duras batalhas, de lutas árduas, contraditórias, difíceis e demoradas. A liberdade, portanto, é o resultado de uma conquista. E acredito ser a maior conquista do ser humano, de todos os tempos.
Os negros sofreram séculos e séculos sob a opressão de serem tidos como escravos. Foram tratados como animais, seres inferiores. Até que alguns dignos homens e mulheres negros e brancos, irmanados, decidiram enfrentar esse mal e o derrotaram, deixando no passado essa doença da escravidão negra, que ficou na memória como uma terrível e vergonhosa marca em nossa história.
Um dos maiores homens de nosso tempo, Nelson Mandela, disse que “ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para exercer o ódio, as pessoas precisam aprender. E, se elas aprendem a odiar, as pessoas também podem ser ensinadas a amar”.
Graças a pessoas grandes como Nelson Mandela, esse tipo de escravidão, a escravidão pela cor da pele, ficou para trás. Contudo, meus concidadãos, hoje em dia, um outro tipo de escravidão, tanto ou mais tenebrosa, talvez, assombra-nos, corrói-nos e nos mata. É a escravidão imposta pelas drogas, que não escolhe cor da pele, religião, classe social ou idade.
Cada um pode ter a sua imaginação pessoal do que possa vir a ser o inferno. Eu, depois de 13 anos trabalhando como juiz de direito da infância e da juventude, tenho uma visão real do que é o inferno. O inferno, para mim, é ver meninos e meninas, ainda em tenra idade, que se comportam como zumbis mirins, mortos-vivos, inteiramente dopados pelo crack, Pequenos seres humanos capazes de roubar e matar, pois estão totalmente escravizados por essa substância que, hoje, eu penso ter sido criada pelas mãos do próprio demônio.
Corta a alma ver o desespero de uma mãe que busca curar seu filho dominado pelas drogas. Mas, o poder destruidor do crack é tamanho que as chances de cura são remotas. E eu, honestamente, além de contar com bravos policiais, conselheiros tutelares e pessoas iluminadas da sociedade que se dedicam a tratar esses pequeninos viciados, confesso que fico sempre à espera de um milagre. E rezo por isso constantemente.
Diante do avanço veloz e persistente das drogas em todo o nosso país, repito, em todo nosso Brasil, aqui em Fernandópolis nós decidimos tentar evitar que menores tivessem contato com as portas da escravidão das drogas. Assim, ao invés de tão-somente atacar o problema depois de sua ocorrência, por meio de tratamento para dependentes, nós nos apresentamos para enfrentar o diabo das drogas antes que ele se aproximasse dos nossos jovens, por meio de uma decisão apelidada de toque de acolher.
E para encarar o demônio, não bastam homens. Nós precisaríamos de anjos. E eles apareceram, pelas mãos de Deus, com bravia disposição, destemidos e talentosos. São os nossos policiais civis, militares e conselheiros tutelares que rondam esta cidade há cinco anos, retirando menores desacompanhados das ruas, altas horas da noite, pois é exatamente no cair na noite, nas trevas, que o ente do mal se agiganta e corrompe corpos miúdos e indefesos.
Não é nada fácil combater o mal das drogas. Os inimigos não vestem uniformes, muitas vezes eles não têm rosto e, frequentemente, atuam nas sombras. Inclusive, algumas pessoas bem intencionadas até defendem a legalização de algumas drogas, como se uma droga leve liberada não tivesse qualquer vínculo ou estímulo para as drogas pesadas e escravizantes. Sem dizer que alguns daqueles que empunham a bandeira da paz, diante da guerra do tráfico, e que geralmente pertencem às classes abastadas e formadoras de opinião, vão para a boca de fumo comprar seu entorpecente, como muito bem retratou o filme Tropa de Elite, jogando, dessa maneira, lenha na fogueira de satanás.
Meus concidadãos. Nós estamos em guerra sim. Eu, de minha posição, fiz essa declaração há muito tempo. Sei que alguns se preocupam conosco, pois o inimigo é forte, poderoso. Porém, como bem disse o maior dos líderes que eu já estudei, Winston Churchill, “a coragem é a primeira das qualidades humanas, porque é a qualidade que garante todas as demais”.
Nossos filhos não nasceram na cidade dominada pelo tráfico. Eles nasceram na cidade em que policiais e conselheiros tutelares tentam proteger dia e noite as crianças desse mal. Se o programa Fantástico, da Rede Globo de televisão, que nenhum contato teve comigo previamente às suas incursões noturnas – incursões que são altamente discutíveis sob o prisma da lei e que estão sendo investigadas por ordem minha – não deu a mínima importância ao nosso esforço de mais de cinco anos, isso não abala nossa fé na construção de uma cidade melhor. Se para esse programa de televisão nossa luta é um fracasso, eu respondo a eles, também com Churchill, que “o sucesso consiste em ir de derrota em derrota sem perder o entusiasmo”. E eles não nos derrotaram na alma.
Eu sei que hoje nossa cidade chora uma injustiça. Não pela luta de nossos bravos policiais, que atuaram segundo os ditames da lei e realizaram um exuberante trabalho naquele final de semana. Mas, um dia, eu escreverei um livro sobre tudo que vi, ouvi e presenciei nesses dias difíceis de uma cobertura jornalística que jamais imaginava acontecer da forma como se deu. E para aqueles que nos tentam amedrontar, com suas investidas para nos arrancar o cargo e até com ameaças à minha integridade física, eu antecipo que eles podem até conseguir esses desideratos. Porém, jamais conseguirão subtrair a nossa dignidade, a dignidade do povo fernandopolense. Pois, para mim, parafraseando novamente Winston Churchill, “é melhor morrer em combate do que ver ultrajada nossa nação”; no caso, a nossa cidade, a cidade onde os meus filhos nasceram.
Ou, ainda, como nos ensinou Martin Luther King: “É melhor tentar e falhar do que ver a vida passar. É melhor tentar, ainda que em vão, do que ficar sentado, fazendo nada até o final. Eu prefiro caminhar na chuva do que, em dias frios, em casa me esconder. Prefiro ser feliz embora louco, do que em conformidade viver. Pois o que vale não é o quanto se vive, mas como se vive”.
Do muito que vivi naqueles dias que fomos arrastados por um programa de televisão da mais potente empresa desse setor do país, só posso dizer agora que passei horas sob um terrível dilema moral. E quanto foi difícil aguentar. Mas, minha formação cristã me fez pensar como naquela bela música de John Bon Jovi: “Senhor, nós temos que manter a fé! Que seu amor por nós não permita que o ódio invada nossos corações. E hoje eu sei que nunca é tarde para manter a fé. Senhor, nós temos que manter a fé”.
Meus concidadãos. Mesmo diante de lágrimas de injustiça, nós não podemos perder o foco de nossa batalha. E o inimigo não é, nunca foi e nunca será este ou aquele órgão de imprensa. Nosso adversário é a droga, criada pelo ente do mal. E nossa luta é contra a escravidão que ela produz em todos que ela corrompe, principalmente, nossos jovens. Para tanto, nós precisamos nos unir, nos fortalecer e assumir nossas responsabilidades, cada qual na sua esfera de influência.
Os pais devem ser mais diligentes com os filhos, mais vigilantes e não descuidar de sua autoridade. Os filhos mais obedientes aos pais. Os empresários mais ciosos de suas promoções festivas, mais cuidadosos com o que promovem, diante da linha tênue entre a diversão e a baderna que favorece o inimigo, a droga. Os religiosos devem se voltar ainda mais para a comunidade, abraçando corações indóceis e levando a palavra de Deus a todos os cantos de nossa cidade. As escolas devem redobrar seu mister excluisvo de ensinar e não ter medo de falar aos alunos que Deus existe, que ele é grande e que seu filho morreu por nós. Os jovens devem prestar mais atenção às bebedeiras que fazem em plena luz do dia, pelas avenidas e ruas da cidade, fazendo dos locais públicos palcos para badernas e levando esse modelo como se fosse o único para a diversão, enquanto nossas crianças assistem a tudo isso. As autoridades devem continuar a combater o crime e aprimorar seus instrumentos de defesa social. Exatamente como fizeram naquela noite do dia 27 de agosto e madrugada de 28, uma operação exemplar e digna de entusiasmados aplausos, mas não podem se preocupar, em primeiro plano, em dar visibilidade de suas ações a este ou àquele canal de televisão. A imprensa deve fazer seu papel essencial à democracia: correr atrás da notícia e divulgar ao povo os acontecimentos bons ou ruins. Mas, não pode se descuidar das leis do país apenas pela busca do furo da notícia. Enfim, todos nós temos compromisso e responsabilidade com a segurança pública, pois este é um dever de todos, segundo a Constituição Federal do Brasil.
E para vencer essa guerra contra a droga e a escravidão que ela produz, nós precisamos de confiança. E aqui antecipo as minhas. Eu confio na Presidência da República Federativa do Brasil. Eu confio no Congresso Nacional e em seus parlamentares. Eu confio no Supremo Tribunal Federal e na justiça brasileira. Eu confio no Ministério Público. Eu confio na Ordem dos Advogados do Brasil e nos seus pares. Eu confio na Polícia Civil paulista. Eu confio na gloriosa Polícia Militar. Eu confio na imprensa. Eu confio no conselho tutelar, nas instituições públicas e privadas que lidam com menores. Eu confio nos poderes executivo, legislativo e judiciário deste município. Eu confio em empresáriois e trabalhadores. Eu confio nas pessoas de bem que aqui estão e desta grandiosa cidade. E acima de tudo, eu confio em Deus e em Nosso Senhor Jesus Cristo.
E eu, na condição de juiz de direito da infância e da juventude, agradeço imensamente estas homenagens, que, por questão de justiça, compartilho com todos os policiais civis, militares e conselheiros tutelares, que são nossos agentes de proteção da infância e da juventude. É muito difícil para mim tentar retribuir todo esse carinho que aqui encontro e que reputo dirigido à justiça como um todo, não á pessoa de um magistrado. E em nome dessa generosidade, peço a todos que não exercitem o sentimento de ódio, contra quem quer que seja, nem o de autopiedade, de autocomiseração, pois isso nós direciona ao egoísmo e não à fraternidade. Que as lágrimas da injustiça tanto falada nesses dias, em razão de uma reportagem jornalística, sejam transformadas em lágrimas de amor aos nossos jovens, meninos e meninas, que necessitam de nós, adultos, para guiá-los segundo os bons princípios familiares, segundo as prescrições da lei brasileira, segundo os mandamentos da lei de Deus.
Hoje nós escrevemos aqui, na casa do povo, um importante capítulo de uma guerra, de uma batalha dura e que ainda nos custará muito. Mas também nós escrevemos aqui a história da libertação de um povo da escravidão das drogas. Uma história de luta pela liberdade.
(*) Juiz de direito da cidade de Fernandópolis (SP)
**Discurso proferido no dia 8 de setembro de 2010, na Câmara Municipal de Fernandópolis, em reunião promovida pela Associação de Amigos do Município de Fernandópolis.
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