sábado, 23 de outubro de 2010

Edson Pelé

Juca Kfouri (*)

A infância de Pelé explica muita coisa.
Explica o que foi Pelé dentro do campo e o que é o cidadão Edson Arantes do Nascimento, divisão que ele mesmo gosta de fazer.
Sim, ele se refere a Pelé sempre na terceira pessoa e distingue o jogador do homem, Pelé de Edson.
"O Pelé é perfeito, o Edson é uma pessoa como qualquer outra", costuma dizer.

E a infância "de ambos" foi difícil, verdadeiramente dura. Até fome ele chegou a passar. E ninguém passa fome impunemente.
Tamanha provação serviu para moldá-lo como um atleta que não desistia nunca, que queria sempre mais, e para fazer dele um homem que, por mais fortuna que tenha acumulado, com toda a justiça e por méritos próprios, tenha se mantido permanentemente inseguro diante do futuro.

Como se ainda temesse voltar a não ter o que comer, uma espécie de fome atávica, coisa que só quem já sentiu será capaz de explicar.
O pai de Pelé, Dondinho, também era jogador de futebol, exímio cabeceador, segundo consta Ämarcou cinco gols de cabeça numa só partida, em 1939, algo que nem Pelé jamais fez.
Mas sofreu uma séria lesão no joelho direito que o impediu de seguir carreira.
A lesão aconteceu em abril de 1940, quando Pelé estava na barriga de sua mãe há apenas três meses.
Era a estreia de Dondinho no Atlético-MG, clube que viria a ser o primeiro campeão brasileiro, em 1971, um dos 12 maiores do Brasil.

Nascido em Três Corações, no Estado de Minas Gerais, muito cedo Pelé mudou-se com a família para Bauru, no interior de São Paulo.
E foi lá que um dia chegou em casa na hora do jantar e encontrou a mãe, Celeste, em prantos, porque não tinha o que fazer para alimentar o marido e seus filhos.
Pelé ajudava em casa como podia. Vendeu amendoins, engraxou sapatos (sua caixa de engraxate é um de seus orgulhos e peça fundamental em seu museu) e, aos 16 anos, foi para Santos, a 417 quilômetros de Bauru.

Uma noite, frustrado por ter perdido um pênalti na decisão de um campeonato juvenil, chegou a pegar suas poucas roupas para fugir de Santos e voltar para casa, o que só não aconteceu porque foi surpreendido na hora da fuga.
Antes disso, em 1950, Pelé viu o pai chorar ao pé do rádio com a derrota da seleção brasileira para o Uruguai, na decisão da Copa do Mundo, no Maracanã, naquela que é considerada, até hoje, a maior dor coletiva do país.

Pelé mesmo conta que, para consolar o pai, sentou-se em seu colo e prometeu: "Ainda vou ser campeão mundial para deixar você feliz".
Ele tinha, então, quase dez anos e, exatos oito depois, nos gramados da Suécia, cumpriu exemplarmente a promessa, mais jovem campeão mundial da história do futebol, com seis gols marcados na Copa de 1958.
Foi, aliás, cinco vezes campeão do mundo, como se sabe, três pela seleção, duas pelo Santos.


Quem já esteve perto de Pelé sabe que em torno dele existe um aura, alguma coisa indefinível, fenômeno idêntico ao que cerca Michael Jordan, por exemplo. Gente que parece ser feita de uma massa especial, rara.
Quem jogou contra Pelé conta que seu olhar sempre foi assustador, intimidador. O famoso olhar assassino.
E quem o viu jogar pôde constatar que ele sempre devolveu as agressões que sofreu em campo.

Pelé nunca foi "bonzinho". Corria atrás da bola como se corresse atrás de um prato de comida.
E não importa se hoje pode ter tantas refeições quantas desejar. O temor, obviamente infundado, de que venha a não poder parece reger seus passos, suas companhias, a escolha de seus sócios, inclusive.
Se quando atleta ficou famoso também por ser "pão- -duro", do tipo que não abre a mão nem para dar bom- -dia, o empresário perdeu muito dinheiro por se cercar de gente nada confiável, que o enganou diversas vezes, quando moço, quando maduro, quando bem mais velho.
Mais grave, gente que conseguiu o que por anos e anos pareceu impossível: manchar a imagem impecável que Pelé ostentou por décadas a fio.

É compreensível que um atleta, no começo ou no auge de sua trajetória, preocupado em fazer o melhor em sua profissão (e Pelé sempre foi perfeccionista), sem tempo para se dedicar de perto a outras atividades, seja vítima de espertalhões.
É ainda aceitável que alguém de formação rudimentar como ele, mesmo mais maduro, não se dê bem em seus negócios até quando já terminada a carreira de jogador de futebol.

Mas não se pode creditar só à ingenuidade quando alguém, aos 50, 60, 70 anos, continue a se cercar de sócios sem nenhum senso ético.
A sensação que se tem é a de que Edson Arantes do Nascimento, sincero em seus simplórios discursos contra a corrupção, parece convencido de que não há como ganhar dinheiro na atividade empresarial dentro de regras limpas, razão pela qual sempre fechou os olhos para a prática de alguns de seus sócios, gente que contribuiu para macular a imagem do Atleta do Século até com transações mal-explicadas que envolveram o Unicef e causaram grande impacto no Brasil.

Por exemplo: no começo da carreira, mas já famoso, Pelé confiou cegamente em um sócio de nome Pepe Gordo (não confundir com o ponta-esquerda Pepe, com quem formou o ataque do Santos), que o levou a perder todo o dinheiro que tinha acumulado até então.
Encerrada sua vida de atleta, fundou com um certo Hélio Viana (melhor seria dizer com um errado...) a Pelé Sports & Marketing, sociedade que terminou numa série de processos na Justiça brasileira, nos quais acusa o ex--parceiro de tê-lo lesado em milhões de dólares.
O fato é que Viana aparentava ser muito mais rico do que Pelé, que nunca foi de ostentar riqueza.

Orgulhoso e teimoso, dois de seus traços mais característicos, Pelé, no entanto, não reconhece publicamente seus equívocos, não admite que errou como empresário nem como cidadão ao relutar, por exemplo, em reconhecer uma filha que teve ainda muito jovem o reconhecimento só se deu por decisão judicial.

O Rei não pede desculpas à opinião pública, como se a palavra real não pudesse voltar atrás.
Assim aconteceu quando, em 2000, ele protagonizou um inexplicável Pacto da Bola ao lado de Ricardo Teixeira, presidente da Confederação Brasileira de Futebol, e de João Havelange, ex-presidente da Fifa.
Teixeira era objeto de duas CPIs no Congresso brasileiro (motivadas em grande parte pelas denúncias do próprio Pelé) e estava de joelhos, desmoralizado.

Pois Pelé deu-lhe a mão e o oxigênio para ressuscitar em troca de um mal traçado calendário quadrienal para o futebol brasileiro, tradicionalmente desorganizado e corrupto. Mesmo advertido de que o tal acordo não daria certo, Pelé insistiu e chegou a dizer que se desculparia se o projeto fracassasse.

Pois o calendário não durou nem sequer um ano, e ele jamais se desculpou, embora tenha servido para perpetuar Teixeira, reabilitado pela conquista do pentacampeonato na Ásia.
Ao mesmo tempo, por contraditório que pareça, Pelé é capaz de ser profundamente humilde, como se não tivesse a exata dimensão de sua importância.

Uma vez, já como ministro--extraordinário dos Esportes do governo Fernando Henrique Cardoso, pediu a um amigo que marcasse uma audiência com o cardeal de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, com quem, ele sabia, o amigo tinha intimidade.
Surpreso, o amigo lhe disse que bastaria um telefonema de sua secretária no ministério para a secretária do sacerdote , que este viria ao encontro dele no local e na hora que ele determinasse. Mas, com reverência, Pelé insistiu e avisou que ele é que iria até dom Arns, diga-se de passagem um dos símbolos da resistência à ditadura militar brasileira.

Por outro lado, Pelé é capaz de esnobar o presidente da nação mais poderosa do mundo. Como no episódio em que recebeu uma ligação de Bill Clinton, que queria vê-lo em Washington. Deu-se o seguinte diálogo, com testemunha: "Lamento, senhor presidente, mas, em julho, eu não posso, já tenho compromisso. Em outubro, também não dá, infelizmente, estou com a agenda lotada. E, em dezembro, é impossível".

Quando lhe perguntaram como é que ele rejeitava três datas oferecidas pelo homem mais importante do planeta, respondeu: "Ele é que quer me conhecer. Eu já estive com uma porção de presidentes americanos: com o Kennedy, com o Reagan, com o Nixon, com o Robert Kennedy [a quem incluiu no rol]. Para mim, tanto faz conhecer um a mais ou a menos."
O encontro só foi acontecer no ano seguinte, quando Clinton visitou o Brasil, no morro da Mangueira, no Rio.
Até hoje atende a seus fãs com inacreditável paciência.

É capaz de ficar horas distribuindo autógrafos (e não se trata, aqui, de uma figura de linguagem, de uma imagem pura e simples: ele fica, mesmo, horas atendendo a admiradores).
Em 1985, Pelé era comentarista de TV e viajou no mesmo avião da seleção brasileira para Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, onde o time jogaria pelas eliminatórias da Copa do Mundo de 1986.
Ao chegar ao aeroporto boliviano, a seleção desembarcou primeiro e logo foi cercada por centenas de jornalistas do mundo inteiro.
O bem-amado técnico Telê Santana, Zico, Sócrates, Cerezo dividiam as atenções da imprensa. Pelé foi dos últimos a entrar no saguão e, tão logo se fez notar, todos os jornalistas abandonaram as entrevistas que faziam e correram para cima dele.
Quatro horas depois, já no hotel, todos de banho tomado e alimentados, menos ele, Pelé continuava a ser entrevistado, desta vez por um radialista boliviano de Cochabamba, que, num gravador rudimentar, registrava a conversa que seria levada ao ar apenas no dia seguinte.

Dez anos depois, no dia de sua posse como ministro, Pelé atrasou a cerimônia em mais de uma hora para atender a cerca de 150 funcionários do hotel em que ficara hospedado em Brasília e para os quais, em fila indiana, havia prometido autógrafos em sua saída. Para cada um perguntava o nome e fazia questão de dar autógrafos personalizados, diante do desespero de seus assessores, aflitos com o estrago na agenda recém-montada do novo presidente da República. "O presidente pode esperar. Eles é que não podem se decepcionar", argumentou.

Como se tivesse nascido para ser ídolo, ele alimenta o carinho de que é objeto e certamente sentiria falta de tanto calor humano.
Ao mesmo tempo, é profundamente místico. É capaz de contar que conversa com Deus frequentemente e que pergunta a Ele por que foi escolhido, principalmente quando viaja de avião.
Ou, ainda, relatar que diversas vezes visitou crianças desenganadas em hospitais e as viu se recuperar diante de sua simples (?) presença.

Como contou em entrevista à "Playboy", em 1993, quando foi desafiado a revelar uma face sua ainda desconhecida: "Casos de pais que pedem para Pelé visitar seus filhos em hospitais, crianças que estão em cadeiras de roda... Eu ir visitar e... e as crianças andavam, pô! [emocionado]. Criança que está na cama, não quer comer, que não fala com o pai nem com a mãe há dez, 15 dias, e que, quando me vê, muda tudo. Pais que telefonam e dizem que o filho está desenganado, com câncer, não sei também até que ponto dramatizam ou não, mas, enfim, que dizem que o menino tem só um mês de vida e que quer me ver enquanto ainda tem consciência, eu vou, a criança não morre naquele mês e até se recupera...São essas coisas que nunca falei, com medo de ser mal interpretado, mas que já aconteceram no Brasil e no exterior e que, eu tenho certeza, fazem parte de uma ligação mais próxima de Pelé com Deus".

Curiosamente, porém, principalmente para quem é tão reconhecido pelo mundo afora (uma antiga pesquisa revelou certa vez que seu nome era mais conhecido do que a marca Coca-Cola), Pelé não tem nada de modesto.

Faz questão, no que revela um traço surpreendente de insegurança, de realçar que só existiu um Beethoven, um Michelangelo, um Pelé.
Como John Lennon, que certa vez afirmou que os Beatles eram mais conhecidos do que Jesus Cristo, Pelé tem a necessidade de manter seu nome na ribalta, apesar de os outros já tratarem, exaustivamente, de fazê-lo.
Extremamente emotivo, incapaz de esconder suas emoções, Pelé se define como um "chorão" e não alcançou como comentarista de futebol nem um milésimo do respeito que obteve como atleta.

E a razão é simples: ele cobra dos jogadores que analisa soluções que era capaz de encontrar dentro do campo, algo simplesmente impossível para todos os mortais e, muitas vezes, até para alguns candidatos à imortalidade.
Avesso a fazer terapia, Pelé imagina-se capaz de se autoanalisar suficientemente para manter o equilíbrio e suportar o assédio permanente de que é alvo desde os 17 anos.

Como se dissesse que "quem é Rei nunca perde a majestade". Até hoje, apesar de tudo, de fato, aos 70 anos, não perdeu.

(*) Formado em Ciências Sociais pela USP, cometárista esportivo da Rádio CBN e da TV ESPN, colunista da Folha de São Paulo

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