domingo, 8 de agosto de 2010

O flimsi

Luis Fernando Verissimo para O Estado de S.Paulo

Somos um pequeno grupo de pessoas de bom gosto. Foi o gosto superior que nos reuniu em Brog, e foi para proteger nosso gosto superior que nos transformamos em... Mas deixe eu contar a história desde o princípio, caro leitor. Para que você nos julgue com todos os fatos. Não queremos piedade, mas também não queremos injustiça.

A cidadezinha de Brog fica numa margem do rio Svlemz, na Bulgária. A cidadezinha é uma pequena joia medieval, e o que falta ao rio em vogais sobra em beleza. Eu descobri Brog por acaso. Todos do nosso grupo de sete conheceram Brog por acaso. O meu acaso foi um ônibus de excursão quebrado, que obrigou seus ocupantes a dormir uma noite em quartos improvisados em diversas casas da cidadezinha, que não tinha hotel ou coisa parecida. Outro acaso foi que só eu, entre todos os que estavam no ônibus, aceitei comer um peixe chamado flimsi, e ouvi do dono da casa que me hospedou o que era o flimsi.

O flimsi, misteriosamente, só dava no rio Svlemz. Todos os anos, na mesma época, ele subia o rio Svlemz para desovar. O rio formava uma espécie de bacia em frente a Brog, e na passagem dos flimsis pela bacia até as crianças, com seus caniços, ou com suas próprias mãos, podiam pescá-los. O flimsi era assado sobre brasas. Na época da desova, não se comia outra coisa em Brog. E aquela era a época da desova.
Impossível descrever a textura do flimsi e o sabor da sua carne branca. O flimsi era o que a truta sonhava em ser um dia. Era diferente de tudo que eu já provara, aquático ou terrestre. Não precisei comer mais de dois - e no fim comi 12 - para decidir que voltaria a Brog no ano seguinte, na mesma época, para comer aquela raridade. E voltei a Brog todos os anos, por 20 anos, na mesma época. Sem contar para ninguém onde ia ou, depois, onde tinha estado. Sem contar para ninguém da textura indescritível do flimsi, e do sabor da sua carne branca.

Nesses 20 anos, é claro, outras pessoas descobriram Brog. Mas foram poucas, e nenhuma passou adiante sua experiência da beleza do rio Svlemz, e das glórias do seu peixe exclusivo. Formamos uma espécie de irmandade secreta, pactuando não revelar para ninguém a existência do nosso paraíso. Nos reuníamos todos os anos em Brog, na mesma época, para comer o flimsi. Descobrimos um vinho branco da região, tosco e rascante, mas que se transformava, milagrosamente, num Mersault em contato com o flimsi. E assim vivíamos... Até que apareceu Mr. Gordon.

Mr. Gordon também descobriu Brog por acaso. Era um empresário americano excêntrico que fazia passeios de bicicleta com a mulher pela Europa - só os dois, além de seguranças, mecânicos, dois personal trainers, um médico e um contador em vans, atrás - e se perdeu das vans e acabou na cidadezinha, onde ouviu de um habitante local desavisado toda a história do flimsi. Mr. Gordon se encantou com a história e com a paisagem e naquela mesma noite nos declarou que construiria um grande hotel à beira do Svlemz com um restaurante especializado em flimsis, e os promoveria como a mais nova sensação turística do mundo.

Só nos restou decidir como os mataríamos. Optamos pelo envenenamento, seguido por uma simulação de afogamento, com indícios de que as bicicletas descontroladas tinham caído no rio. Combinamos que todos os sete derramariam alguma coisa na bebida do senhor e da senhora Gordon mas só um, sem saber, derramaria o veneno, para ninguém se sentir completamente culpado. E foi o que fizemos, leitor. Aí está a história. Foi homicídio justificado? Foi um ato de egoísmo inqualificável? Agimos em autodefesa? Decida você.

Em tempo: não preciso dizer que o nome da cidadezinha, do rio, do peixe e até do país foram trocados, para proteger nosso paraíso. Tá doido?

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