Josias de Souza (*)
O Brasil é mesmo um país curioso. Oitava economia do mundo, aprendeu a plantar obras, mas ainda não conseguiu enterrá-las como se deve.
O país arranha o céu, mas não é capaz de soterrar manilhas. Levanta prédios, mas se esquece do sistema de esgoto.
Antes de iluminar o flagelo, abra-se um parêntese, para realizar uma oportuna viagem ao passado.
Sugere-se um passeio pelas páginas do livro "The Year 1000", dos ingleses Robert Lacey e Danny Danziger.
Foi publicado no Brasil pela Editora Campus, sob o título "O Ano 1000 - A Vida no Início do Primeiro Milênio".
Traz um retrato do cotidiano de uma Inglaterra em que garfo era coisa por inventar e chifre de animal era usado como copo.
Uma Inglaterra com pouco mais de um milhão de habitantes, menos da metade da população de Brasília.
O grosso das pessoas vivia em casas modestas. Estrutura de madeira, teto de junco, chão de terra batida, paredes de pau-a-pique.
Uma mistura de argila, palha e esterco de vaca dava coesão ao entrelaçado de galhos.
A latrina ficava próxima à porta dos fundos. Era curta a distância percorrida pelas moscas desde as dejeções até os alimentos.
A ausência de assepsia transformava corpos em hospedarias de parasitas. Submetidos a um cotidiano assim, rude, os ingleses se apegavam aos santos.
Atribuíam a eles poderes curativos. Tratavam as doenças com terapias que combinavam remédios populares e fé extremada.
Contra as perturbações do intestino, por exemplo, recomendava-se: "Procurar uma sarça [planta da família das rosáceas], escolher a raiz mais nova...”
“...Cortar nove lascas com a mão esquerda; entoar três vezes o salmo 56 e nove vezes o padre-nosso...”
“...Pegar a artemísia e a perpétua [arbustos da família das compostas] e ferver em leite, junto com a sarça...”
“...Beber uma tigela com a mistura; jejuar à noite; se necessário, repetir a operação por até duas vezes". Fecha parênteses.
O cenário esboçado nas folhas do livro é, ainda hoje, familiar à maioria dos lares do Brasil dos dias que correm.
Pesquisa divulgada nesta sexta (20) pelo IBGE informa: 56% dos domicílios brasileiros não dispunham, em 2008, de ligação com a rede de esgoto.
Repetindo: pesquisa feita pelo IBGE em 2008 revela que 32 milhões de lares brasileiros não tem uma privada conegatada à manilha.
No quadro de 2008, o flagelo ganha contornos de tragédia na região Norte. Ali, 96,2% das residências não dispunham de rede de esgoto.
No Nordeste, a tragédia alcançava 77,6% dos lares. No Sul, 68,8% de domicílios desprovidos de esgoto. No Sudeste, menos: 31,2%.
Segundo o IBGE, a coisa já foi pior: em 2000, o percentual de casas sem esgoto era de 66,5%. Evoliu-se, portanto. A passos de tartaruga manca, contudo.
Se você quiser ser otimista, pode olhar o copo pela metade cheia: o número de casas com esgoto passou de 33,5% em 2000 para 45,7% em 2008.
É pouco, mas estamos a quatro meses do Natal. E o brasileiro, como se sabe, costuma ser otimista no período que separa as festas natalinas do Carnaval.
A campanha eleitoral como que tonifica esse otimismo. Sobretudo numa campanha em que nenhum candidato se anima a fazer oposição ao governo que finda.
É como se a atmosfera econômica benfazeja convertesse o Brasil num gigante de cócoras, agachado numa privada sem canos.
Na Quarta-Feira de Cinzas de 2011, o brasileiro talvez se dê conta do odor que ainda lhe invade as narinas.
Ou, por outra, talvez consiga fabricar uma justificativa para o otimismo. Algo assim: quase metade dos lares do Brasil já dispõe de banheiro com esgoto.
(*) Jornalista e há 20 anos trabalha na Folha de São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário