Muita gente boa acaba se perdendo ou deixando de perceber coisas importantes, pormenores que, se a palavra existisse, deveriam ser chamados de “pormaiores”, tal sua importância e significado, apenas porque não dá a devida atenção às entrelinhas. Comigo vive acontecendo isso, mesmo não fazendo parte do quadro de gente boa a que me referi acima. Pois todos nós deveríamos fixar nossas vistas não só às linhas, mas, igualmente ou até com mais atenção nas tais entrelinhas. Há muita riqueza escondida nela ou, até melhor dizendo, nem tão escondida assim. Existem entrelinhas que berram nos nossos ouvidos, pulam diante dos nossos olhos, fazem verdadeiro escarcéu para serem notadas e nós, simplesmente, deixamos passar em branco, não notamos coisa alguma.
Quando se começou a falar a respeito de um projeto de lei de origem popular que ganhou o apelido de Lei da Ficha-Limpa, talvez tivesse sido interessante colocar um pouco de atenção nessa história de entrelinhas. O projeto de lei se arrastou pelo Congresso Nacional levando rasteiras e tendo que passar por cima de muros, barreiras e tudo mais que os distintos congressistas puderam imaginar para tentar matar o que ainda era apenas um embrião. Apesar de tudo, a danada veio à luz. E, como chegasse cercada de louvores e expectativas, acabou sendo alvo de uma carga imensa de responsabilidade, muito mais do que é capaz uma recém-nascida. Quiseram que a leizinha, que mal acabara de ser parida, já chegasse de martelo na mão socando os maus e os infiéis.
Eis que, depois de muitas marchas e contra-marchas, ela finalmente chega ao Supremo Tribunal Federal que declara a sua condição de nascitura e que ainda não pode atender aos anseios seculares de muita gente. E essa gente, então, se revolta, vai à loucura e ao ódio insano contra o tribunal acusando-o de privilegiar os canalhas em detrimento da sociedade decente. Tudo isso sem levar em conta que o assunto é técnico e, acima de tudo, há outros valores muito mais importantes e vitais para a sociedade além de se punir os malfeitores do momento. Independente do sabor divinal de ver um desses sacripantas ser impedido de tomar posse ou mesmo de se candidatar a uma vaga na grande teta nacional, o que importa, na verdade, é preservar a segurança jurídica de toda a sociedade, mesmo que isso ainda esteja a anos-luz do desejado neste planeta-Brasil. Quer se goste ou não, quando um desses cínicos renunciou ao mandato para evitar uma cassação, essa estratégia era permitida e não havia lei que estabelecesse que, quem fizesse isso não poderia se candidatar a novo cargo político por este ou aquele período de tempo. Essa era a situação, o cenário, por mais indecente que ele pudesse ser. E isso não caiu do céu, foi criado pelos representantes do povo, esses mesmos que estão aí se elegendo apesar da conduta de marginal que muitos demonstram. Não é possível, num ambiente de segurança jurídica, pretender que esse ato seja punido por uma lei que venha depois que ele foi praticado.
Pode soar muito estranho nos dias de hoje, mas já houve época em que alguém poderia ser acusado de criminoso por praticar alguma coisa que nunca havia, antes, sido considerada um crime. E seria julgado e condenado por isso. A determinação de que alguma coisa não pode ser tida como ilegal a menos que exista uma lei nesse sentido é uma conquista da sociedade e nada justifica que ela seja desconsiderada ou flexibilizada. Nem mesmo esses flibusteiros que povoam a política nacional. A lei não pode ser aplicada ao que aconteceu antes dela, sob pena de ficarmos todos nas mãos de uns poucos donos do poder e da força.
Isso não é filigrana jurídica como alguns gostam de dizer. É a segurança da sociedade e de cada cidadão ou cidadã. E se isso nem sempre é respeitado ou não é respeitado como deveria ser, ainda assim não se pode argumentar que, graças a isso, pode-se passar por cima de regra quando interessa. Isso é o que acontece nas ditaduras e ninguém em sã consciência, gostaria de viver numa delas. Mas, por outro lado, é sintomático prestar atenção a essa reação sonora, estrepitosa, retumbante que se tem visto, assim que o Supremo Tribunal Federal declarou que a Lei da Ficha Limpa só pode ser aplicada a partir de 2012. Isso talvez seja o indicativo que, mesmo de maneira desconcertada e desorientada, a sociedade começa a dar mostras de que não está mais suportando viver nessa barafunda em que se transformou o planetinha-Brasil. E isso já é um grande sopro de esperança. Afinal, se não há como aplicar a lei desde já (e não há, mesmo, pois isso seria romper com a regra de que nada pode ser considerado ilícito se não houver lei antes estabelecendo isso), ela pode ser aplicada a partir de 2012, como determinou o Supremo Tribunal Federal. Começaremos a faxina a partir de lá.
Só tem uma coisinha que lei nenhuma vai resolver nunca: será que seria possível essa mesma população, cheia de ansiedade por ver a lei ser aplicada, poderia fazer o favor de não eleger quem anda sujo, mesmo que lhe ofereçam uma vantagenzinha ou outra? Será que dá para se parar de vender ou jogar o voto na lata do lixo? Afinal, convenhamos, a faxina já poderia ter começado há muito tempo.
(*) Advogado , morador em S. Bernardo do Campo (SPO).
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