Bellini Tavares de Lima Neto (*)
Quase toda a minha infância e minha adolescência eu vivi em um bairro de periferia de São Paulo. Hoje, acabou se confundindo com um outro, nobre desde sua origem e a natureza de periferia desapareceu. Mas, quase meio século atrás, era isso que o meu velho bairro era. E, como bairro de periferia, não abrigava exatamente a classe de gente culturalmente mais refinada que uma sociedade possa ostentar. O que, sequer remotamente, depõe contra o caráter e a dignidade daquele pessoal. Como em todo lugar, havia um contingente preponderante de pessoas decentes e uns outros tantos tranca-ruas, esses vidas tortas que insistem em existir em todo lugar e contra os quais parece ainda não terem inventado um antídoto eficiente. Mas o pessoalzinho lá da nossa área não era exatamente um primor de modos e cultura acadêmica.
Nos velhos tempos, esses lugares, apesar de se situarem na capital do estado, guardavam uma certa semelhança com pequenas cidades do interior. Todos se conheciam, falava-se muito da vida alheia e havia algumas personalidades que se destacavam, isso pelas mais variadas razões. O padre, naturalmente, capitaneava a todos. Mas havia o médico que nem sempre habitava o bairro mas fazia parte da casta. E também havia o farmacêutico. Meu pai era o farmacêutico do bairro.
Seria preciso espaço e tempo para relembrar as mais variadas personalidades, os tipos que freqüentavam a pequena farmácia. Dia desses me voltou à lembrança uma família que era cliente da botica. Era uma família de origem portuguesa que, para não quebrar a tradição, tinha um armazém de secos e molhados pouco abaixo do nosso estabelecimento. A mercearia era propriedade de um velho português cujos filhos perambulavam por lá também. E havia os netos, dois garotos que deveriam girar em torno de sete a oito anos. Eles dois, na verdade, foram os personagens que tomaram conta da minha memória há uns poucos dias. A farmácia era pequena, mobiliário às antigas, prateleiras escuras. Um corredorzinho de pouco mais de um metro separava a parte comercial da parte dos fundos onde eram guardados alguns produtos que se vendia por peso como sal amargo, camomila e por aí afora. Exatamente nesse pequeno corredor, à esquerda, havia um compartimento onde se aplicavam as injeções. Ali ficavam o esterilizador, ligado ininterruptamente, contendo as seringas, as agulhas e uma pequena prateleira onde se guardavam o algodão, o álcool e outros objetos destinados à aplicação das injeções. Nada, naquele tempo, era descartável. Nem é preciso dizer que tudo naquele ambiente era frágil, inclusive as paredes que eram feitas de chapas compensadas que ganharam o nome de “eucatex”. Pois, cada vez que um daqueles dois garotos precisava tomar uma injeção, aquilo tudo quase vinha abaixo. Eles berravam desde a chegada à farmácia até irem embora. E aos berros se juntavam os empurrões, safanões, um espernear interminável. Era preciso pelo menos duas pessoas para segurar qualquer um deles enquanto meu pai se esmerava em tentar não furar completamente os meninos com a tão temida agulha. Cada vez que um daqueles garotos precisava tomar uma injeção o fato virava assunto pelas imediações. Gente parava nos arredores para ouvir o berreiro e meu “velho” ficava com o coração na mão, não apenas por conta do escândalo, mas, também, por temer pela integridade de seu quartinho de aplicação.
Embora em matéria de escândalo, aqueles dois garotos fossem incomparáveis, o pavor diante da agulha e da seringa sempre foi uma realidade. Ainda hoje existe muito marmanjo por aí que se desespera diante da necessidade de uma picadinha. E o medo se justificava muito mais nesses tempos antigos quando ainda não havia “internet”, psicologia infantil, melhor compreensão por parte dos adultos em matéria de educação infantil. Portanto, com alguma boa vontade, era possível tentar compreender que aquele pavor pânico demonstrado pelos garotos pudesse acontecer quase cinqüenta anos atrás.
O tempo passou, a minha velha periferia se enobreceu e eu ando longe dela há muitos anos, apesar de alguns insistirem em dizer que ainda que a gente saía da periferia, ela nunca sai de nós. Bem recentemente, eu estava no estacionamento de um grande hospital aqui da capital de São Paulo. Depois de um dia inteiro acompanhando minha filha que se submeteu a uma pequena cirurgia, lá estava eu aguardando o manobrista trazer meu veículo. E assisto à chegada de uma família jovem composta por um pai, uma mãe e um garotinho espevitado que queria correr para todo lado. Seguramente não eram da periferia. De inicio ouvi o pai dar um grito assustador para o menino que, naturalmente, se assustou um pouco com a truculência. Confesso que de pronto me lembrei dos tempos modernos e de todos os avanços e conquistas no setor da educação infantil, da necessidade de diálogos, do respeito devido às crianças e tudo mais. Mas, eu ainda estava um pouco longe da realidade. Para completar a cena, o pai, vendo se aproximarem dois médicos que deveriam estar chegando para seus respectivos plantões, apontou a dupla de carrascos para o garotinho e disse: “você está vendo os médicos chegando? Quer que eu chame eles aqui pra te dar uma injeção?” Aí, o garotinho se aquietou. Ao menos no momento. Mas pode ser que, em breve, ele reencarne um daqueles garotinhos que quase punham abaixo o quartinho de aplicação de injeção de meu velho pai. Afinal, o que são cinqüenta anos, não é?
(*) Advogado , morador em S. Bernardo do Campo (SPO).
Escreve para o site O Dia Nosso De Cada Dia - http: blcon.wordpress.com
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