A redução das áreas de preservação permanente (APPs) nas margens de rios, nascentes e lagos tem estado no centro do debate sobre mudanças no Código Florestal. Embora possa parecer, à primeira vista, que é possível diminuir a faixa mínima de proteção, atualmente de 30 metros, em função do tamanho da propriedade rural ou da largura do rio, é preciso ter muito claro que não existe rio que nasça grande. Mesmo o Amazonas, o maior do mundo, é resultado da contribuição de milhares de rios tributários e estes, sucessivamente, são formados pelas águas de outros rios menores.
Todos os rios, assim como os seres vivos, nascem pequenos e, exatamente por essa condição de fragilidade, precisam ser protegidos. Não é racional justificar a redução da APP hídrica como sendo necessária para liberar áreas para a produção, em grandes ou pequenas propriedades, sob o risco de transformar também as áreas rurais em poluidoras, equiparadas aos centros urbanos, cujas consequências estão aí, concretas e trágicas, demandando imensos recursos financeiros apenas para tentar aproximar esses corpos d’água de suas condições naturais.
Felizmente, há instrumentos que podem compatibilizar a proteção hidroambiental com o desejável aproveitamento produtivo. Penso que pagamentos pelos serviços ambientais são os que apresentam maior potencial de resultados. O gargalo para programas dessa natureza está na constituição de fundos regulares que ofereçam a esses proprietários rurais garantias de renda ao longo do tempo.
Podemos tomar como exemplo um dos critérios do Programa Produtor de Água, da Agência Nacional de Águas, que paga ao agricultor cerca de R$ 150 por hectare/ano para manter preservada a sua APP hídrica. Esse valor é definido como o custo de oportunidade caso a área estivesse desmatada e sendo utilizada como pastagem. Um hectare (10 mil metros quadrados) de APP hídrica equivale a 167 metros de margens de rio protegidas plenamente, com 30 metros de cada lado. Assim, em números redondos, para cada real/ano aplicado, protegeríamos um metro de margem de rio. Um programa com recursos de R$ 100 milhões/ano (o que para esses casos não é um valor elevado) permitiria proteger permanentemente 100 mil quilômetros de margens de rios! Se considerarmos ainda que cada hectare pode ser recuperado com mil árvores, poderíamos ter o beneficio adicional, sem nenhum custo, do plantio de cerca de 650 milhões de árvores.
Tenho defendido a tese de que um fundo com essa natureza e esse valor seja constituído com a destinação de parte dos recursos decorrentes das relicitações/prorrogações das concessões das hidrelétricas amortizadas, que começam a vencer em 2015. Os benefícios para a vida útil das hidrelétricas (qualidade da água, redução do assoreamento) são inquestionáveis, portanto, parece razoável que essa fonte de recursos possa ser utilizada. Embora não haja ainda previsão oficial do montante dessa "apropriação social", a imprensa tem divulgado artigos de especialistas que estimam que a amortização pode chegar a cerca de R$ 6 bilhões por ano. Acredito haver espaço político para alocar recursos da amortização dessas usinas com ganhos sociais e ambientais, além da modicidade tarifária. Esse tipo de solução poderia ser discutida no âmbito do Projeto de Lei 5.487/2009, sobre pagamento por serviços ambientais, de autoria do Poder Executivo, que tramita no Congresso Nacional.
É muito importante criarmos soluções sem retroceder na proteção ambiental. APPs menores do que as atuais podem piorar a qualidade das águas e provocarão, inevitavelmente, a elevação do custo do tratamento tanto para o abastecimento público quanto para o lançamento de efluentes. Quase a metade dos municípios brasileiros (47%) capta água exclusivamente de mananciais superficiais, de acordo com o Atlas Brasil - Abastecimento Urbano de Água, e o grande problema dos mananciais é a deterioração da qualidade de suas águas.
Recentemente, o renomado hidrólogo Carlos Tucci relatou-me um estudo de sua autoria que buscava identificar as razões do brusco aumento de vazão na Bacia do Rio Paraná, da ordem de 34% em relação à série histórica, verificando se tal alteração era permanente ou fruto apenas das variações hidrológicas naturais. Constatou-se que cerca de 30% dessa variação era permanente e causada pela acelerada substituição da cultura do café por soja em vastas áreas do Estado do Paraná. Ou seja, foi bom para o setor elétrico, mas representa um risco para os demais usuários, uma vez que também demonstra que a terra mais desprotegida aumenta a velocidade das enchentes até em grandes rios.
As pesquisas cientificas disponíveis, ainda que poucas, apontam para a necessidade de proteção mínima de 30 metros, para reduzir o assoreamento nos rios e reservatórios causado pela maior velocidade das águas das chuvas sobre o solo, para aumentar a sua infiltração, reduzir ao mínimo o impacto de fertilizantes e agrotóxicos e melhorar a quantidade e a qualidade das águas. Arbitrar faixas de 15 metros, ou menores ainda, de 7,5 metros, não tem nenhuma sustentação cientifica, é um chute. A Agência Nacional de Águas produziu nota técnica, disponível no site www.ana.gov.br, na qual detalha as razões para manter em 30 metros a faixa de proteção nas margens dos rios.
Todos reconhecemos como legítima a demanda pela atualização de um Código Florestal que tem quase 50 anos, valorizando a nossa agricultura, implementando novas soluções de estímulo e financiamento, de aplicação de tecnologias sociais ou produtivas, de regularização fundiária, de arranjos sobre o uso do território, até mesmo recuperando extensas áreas degradadas e tornando-as disponíveis para a produção. Mas não é preciso retroceder. Não há razão para retroceder.
(*) Diretor-Presidente da Agência Nacional de Águas (ANA)
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