quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A terra usurpada

Lúcio Flávio Pinto (*) 

Em 1971 o governo federal se apropriou de dois terços das terras devolutas da Amazônia Legal, com seus quase cinco milhões de quilômetros quadrados. Foi o maior ato de usurpação fundiária da história da humanidade, realizado através de um pedaço de papel, um instrumento jurídico característico dos regimes de exceção: o decreto-lei, que é a intromissão do Executivo na esfera de competência do Legislativo. 

Mas não houve reação. O Brasil estava no auge da ditadura, sob o governo do general Garrastazu Médici (1969/74). Os Estados se achavam totalmente submissos ao poder central. A opinião pública estava anestesiada. E, ainda por cima, predominava a crença de que a União era mais eficiente, sábia e justa do que os entes federados. /;/;/;/ Essa crença perdurou até recentemente sobre as áreas de várzeas da Amazônia. Com base em uma regra centenária, considerava-se que as áreas situadas a até 33 metros de profundidade, em terra a partir da linha do preamar médio de 1831, por serem terras de marinha, pertenciam à União. 

Era uma regra legal, que se legitimava na certeza de que seria melhor assim. No princípio, para a defesa da costa contra agressões externas. Em seguida, para ação agrária. Esse entendimento está chegando ao fim, por ser obsoleto, e nem ao menos profícuo. As cortes supremas (STF e STJ) e a própria justiça federal de primeiro grau parecem dispostas a estabelecer agora a verdade: essas terras são da jurisdição estadual. 

Na contramão dessa tendência, o SPU (Superintendência do Patrimônio da União) anda pelas ilhas e várzeas se apossando de áreas de ocupação antiga por gerações de paraenses. Alega que, assim, promoverá regularização fundiária e assentamento rural, transformando as condições sociais de vida, que causam desigualdades e injustiças. Uma espécie de reforma agrária pervertida, realizada através de burocracia, papel no lugar de realidade (ainda que seja papel de primeira qualidade, usado para a impressão dos documentos avalizados pela SPU). 


Nesse caso, e em vários outros, com frequência mais recente, relativos aos conflitos pela posse da terra, vários grupos pedem que o caso seja federalizado. Na Amazônia, considerando suas condições naturais e sua história, a federalização significa renúncia ao direito natural a pretexto de evitar a participação do Estado ou do município, menos eficientes e mais suscetíveis a desvios, como a corrupção. 

Mesmo que essa presunção de culpa tenha fundamento, a racionalidade e eficiência do governo federal estão condicionadas por seu compromisso com os agentes da ocupação da Amazônia, que expressam interesses econômicos incomparavelmente maiores, e trazem consigo formas de atuação agressivas e estranhas à região. 

A maior parte dos benefícios do intervencionismo federal (que quase sempre se reveste dessa marca, ainda que dentro da lei) se concentra nesses parceiros, identificados genericamente como “grandes projetos”, o que acarreta concentração. Já os políticos e burocratas estaduais e municipais, mais próximos da terra e dos seus habitantes, estão ao alcance de suas realidades e pressões. São – na verdade, deviam ser – os canais de um movimento feito de baixo para cima e de dentro para fora. A voz amazônica, portanto. 

As áreas de várzeas são o mais legítimo sítio desse direito natural, determinado pelas condições físicas da região, pela sua mais antiga ocupação, mais fecundo processo histórico e o locus que resta do domínio nativo. Pode até acontecer que essa mudança não traga benefícios reais. Mas muda um status quo, do qual não se pode esperar melhoria alguma. 

Foi o que se viu, por exemplo, em Rondônia. A desestruturação dos seringais eliminou uma organização que servia à exploração do trabalhador e propiciou a colonização por assentamento de migrante (mas destruindo a floresta). O distributivismo inicial das terras foi estiolado depois pela venda de grandes áreas a particulares, dando retorno à latifundiarização da terra, só que, agora, sem as matas nativas, no mais devastado território amazônico. 

Nas várzeas paraenses ocorre processo semelhante. A exploração dos ribeirinhos pelos donos das terras altas não teve como efeito, na nova tentativa, sua liberação para um patamar produtivo melhor. O que aconteceu foi a desorganização do espaço e a introdução de uma clientela estranha. O resultado: mais conflito. 

Talvez agora se consiga estabelecer novas condições a partir da retomada do processo histórico pelo direito natural, coerente com a paisagem e o seu personagem humano. 

(*) Jornalista e Sociólogo

Nenhum comentário:

Postar um comentário