sexta-feira, 22 de novembro de 2013

A fragilidade da atividade cultural

João Carlos de Figueiredo Ferraz (*)  

Em 18 de outubro foi publicado no Diário Oficial da União o Decreto n.º 8.124, assinado pela presidente Dilma Rousseff, que trouxe grande agitação ao meio cultural brasileiro. Preparado silenciosamente pelo Ministério da Cultura, esse decreto veio regulamentar a Lei n.º 11.904, que cria o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), e traz vários pontos polêmicos - que, seguramente, serão analisados tecnicamente por advogados e profissionais da área cultural e, oportunamente, deverão ser questionados pelas entidades ou pessoas físicas que se acharem por ele prejudicadas. Mas tem também conceitos que valem a pena ser discutidos. 

O primeiro ponto que merece ser questionado diz respeito à sua abrangência. Diz o artigo 2.º, III, que são bens culturais passíveis de "musealização" os bens "móveis e imóveis, de interesse público, de natureza material ou imaterial, considerados individualmente ou em conjunto, portadores de referência ao ambiente natural, à identidade, à cultura e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira". Nessa definição pode ser considerada de interesse nacional para fins culturais absolutamente qualquer coisa, desde álbuns de figurinhas esportivas dos anos 1950 até rótulos de cachaça, passando por imagens religiosas que alguma família humilde tenha herdado de um parente distante, além das obras de arte propriamente ditas. Tudo, a critério de uma comissão formada em sua maioria por leigos no assunto (terá um assento para cada ministério), pode ser considerado bem cultural e de interesse nacional. 

Mas até aí, tudo bem. O que causa maior preocupação e dúvida não é exatamente o que está escrito, mas o que não é especificado. É como se dizia antigamente, "o diabo mora nas entrelinhas". Refiro-me ao artigo 20, que dá ao Ibram o direito de preferência em caso de venda judicial ou leilão de bens culturais. Essa preferência é sensata e legítima, porém o critério para a sua utilização deveria ser bem definido para evitar problemas. 


Todos sabemos da enorme dificuldade em que vivem as instituições culturais, públicas e privadas, no Brasil: sem verba para tocar a sua programação de exposições e eventos nem para a manutenção básica de suas instalações e, muitas vezes, sem condições sequer de manter as portas abertas. No caso de optar pela compra de um bem de interesse nacional, depois de consultar os museus e instituições interessados, como o Ibram conduzirá essa negociação? Haveria um prazo para exercer o seu direito de preferência? E depois de esgotado esse prazo, caso a negociação não se torne viável por qualquer motivo alheio à vontade do vendedor, o proprietário estaria liberado para vendê-lo a outros interessados? E se os únicos interessados na aquisição da obra forem museus ou colecionadores no exterior, o Ibram autorizaria a venda? No caso de não haver interessados no Brasil, o proprietário teria de ficar com a obra a contragosto, mesmo precisando vendê-la? Se assim fosse, seria criado um "limbo" no qual essas obras ficariam, sendo de propriedade de alguém que não poderia vendê-las mesmo quando precisasse. Não sei se isso é legal, mas é justo? 

Uma obra de arte é um bem móvel vendido pelas galerias ou casas de leilão a pessoas que, com suas economias, querem adquirir algo por prazer ou por investimento. Essas pessoas, colecionadores ou não, movimentam, segundo estatísticas, cerca de 80% dos negócios e são elas que dão vitalidade ao setor cultural. Caso não tenham segurança ou garantia de que o bem que estão comprando possa ser negociado livremente, os compradores vão investir em outras coisas e a atividade cultural estanca. Se as galerias, assim como as casas de leilão, deixam de vender, os artistas, não tendo como escoar a sua produção, deixam de produzir e, aos poucos, nada restará. Os artistas serão os grandes prejudicados e, por consequência, a produção cultural brasileira. 

Para não ser totalmente crítico e alarmista, porém, vale ressaltar os pontos positivos do decreto, como, por exemplo, a grande preocupação demonstrada com a integridade não apenas das obras de arte, mas de todos os bens materiais, móveis e imóveis, que pertencem ou venham a pertencer ao patrimônio cultural brasileiro. Apesar de extremamente rigoroso e policialesco, o decreto prevê processar criminalmente quem não cuidar desses bens culturais que estiverem em sua posse e não seguir os mandamentos previstos na lei. 

Mas há um ponto que não fica muito claro no decreto: o acervo dos museus e instituições públicas, bem como os prédios onde estão instalados, que são de inteira responsabilidade do governo, o qual tem por obrigação zelar por sua conservação e integridade, também são protegidos por essa lei? Caso as obras do acervo de uma instituição pública estejam se deteriorando em mofo, cupins e umidade, ou se os prédios que essas instituições ocupam estiverem sofrendo por ação da natureza ou por má conservação, podem também seus diretores ser processados criminalmente? O decreto não diz especificamente qual a responsabilidade do Ibram por essas instituições, mas poderia também seu diretor sofrer o mesmo processo? 

Todos sabemos da boa intenção que há nesses documentos. Sabemos que as pessoas se preocupam e fazem esses projetos de lei com o desejo de dar à sociedade a oportunidade de desfrutar a produção cultural brasileira, conviver com essas importantes obras de arte, estudá-las, analisá-las e aprender com elas. E sabemos como é importante para todos ter proximidade com a nossa cultura e os bens que ela cria. Mas essas leis deveriam ser discutidas com a sociedade, com as pessoas que, por seu conhecimento e experiência, possam contribuir. Deveríamos pensar em ações que estimulem as pessoas a abrir suas coleções, e não amedrontá-las. 

Caso contrário, ao invés de apoiar, desestimulamos; ao invés de ajudar, atrapalhamos; ao invés de construir, destruímos. 

(*) Presidente do Instituto Figueiredo Ferraz 

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