Opinião do Estadão
Lula saiu um pouco igual e um pouco diferente do bem-sucedido tratamento do câncer na laringe diagnosticado há exatos cinco meses. O Lula de sempre e o Lula mudado apareceram no mesmo vídeo de pouco menos de três minutos que o ex-presidente gravou para anunciar a cura da enfermidade. O primeiro é o líder messiânico que jamais será apanhado dizendo em duas palavras o que pode dizer em vinte - uma das fontes de seu formidável carisma e poder de convencimento, a ponto de a loquacidade a serviço da autopromoção ter se tornado uma espécie de segunda natureza do escolado palanqueiro. Eis o Lula de safra: "Vou voltar à vida política porque acho que o Brasil precisa continuar crescendo, continuar se desenvolvendo, gerando emprego, gerando distribuição de renda e melhorando a vida de milhões e milhões de brasileiros que conseguiram chegar à classe média e não querem voltar atrás. E daqueles que sonham em chegar à classe média".
No entanto, visto que ninguém passa impunemente por se saber portador de uma doença do gênero e pelas vicissitudes decorrentes das severas terapias empregadas no seu combate, um Lula submetido às servidões da condição humana também entrou em cena. "Agora", avisou no vídeo, "volto à minha militância com muito mais cuidado, muito mais maduro e muito mais calejado, pensando em primeiro lugar em cuidar da saúde." O tempo dirá se a consciência dos próprios limites - ele está curado, mas durante muito tempo terá de poupar as cordas vocais - prevalecerá sobre as pressões para que continue a agir como salvador da pátria petista. Nunca é bom, obviamente, ter tido câncer, mas, pior ainda, no caso dele, é enfrentar em seguida os desafios de um ano eleitoral. O principal, como se sabe, é o que ele próprio se criou, quando, nos seus tempos recentes de insopitável onipotência, resolveu repetir em São Paulo, com o ministro da Educação, Fernando Haddad, o que fizera com a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, no plano nacional.
Do estrito ponto de vista dos seus interesses partidários, Lula agiu certo ao considerar a vitória na eleição para prefeito da capital a primeira etapa do projeto hegemônico de cristalizar o poder do PT no País. A segunda etapa, evidentemente, seria a remoção do PSDB do comando do Estado, em 2014, depois de 20 anos ininterruptos. Só não podia prever o seu afastamento forçado do jogo político, o que deixou Haddad, jejuno em eleições como Dilma, à míngua de apoios - mesmo entre os petistas. O dedazo que ungiu Dilma em 2010 funcionou por duas razões básicas: primeiro, porque o PT não tinha um grande nome para contrapor ao do presidente; segundo, porque ele estava lá o tempo todo para carregá-la diante do eleitorado. Já em São Paulo, Lula cometeu dois erros.
Subestimou as consequências da eliminação da candidatura natural da ex-prefeita Marta Suplicy - entre elas, a sua recusa, reafirmada ainda há pouco, de pegar pela mão o ex-ministro e desfilar com ele pelos redutos petistas da capital. "Haddad tem que gastar sola de sapato", ensinou, insinuando que ele que se arranje por sua conta. "O restante é conhecer os problemas da cidade", cutucou. Às demandas para se engajar na campanha, reagiu: "Não se turbina uma candidatura com desespero, pressões e constrangimento". Tivesse Lula lido Shakespeare, saberia que "os infernos não conhecem fúria maior do que a de uma mulher rejeitada". O seu segundo erro - inadmissível para um político com tamanho traquejo - foi imaginar que José Serra não se lançaria candidato, abrindo espaço para a profana aliança do PT com o prefeito Gilberto Kassab. O esperto criador do PSD, que a propôs a Lula, mudou de ideia mais depressa do que o tucano, já então pré-candidato, leva para dizer "papelzinho".
Lula não poderá culpar Haddad se ele perder para Serra nem invocar a doença para atenuar a própria responsabilidade pelo eventual fracasso do afilhado. "O Haddad não é o centro da vida do Lula", ressalva o ministro e amigo íntimo Gilberto Carvalho. Pode não ser agora, mas, apesar do que disse sobre pensar na saúde, a ambição de uma vitória de virada em São Paulo não o deixará em paz.
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