Kennedy Alencar (*)
A bebida na Copa e a rebelião congressual em Brasília são assuntos relevantes, mas há coisa mais importante acontecendo neste momento no país. Uma delas é o aumento da intolerância em relação à diferença. Entre as causas, aparecem com frequência radicalismos morais e religiosos que prosperam em meio a frustrações pessoais.
A prisão em Curitiba de dois homens acusados de estimular a violência contra negros, judeus, homossexuais, mulheres e nordestinos é sinal de que algum freio começa a ser dado. O apoio da sociedade ao AfroReggae, ONG com respeitável trabalho social e cultural, é evidência de que o Brasil vem melhorando e se civilizando, apesar do longo percurso adiante.
Marcello Valle Silveira Mello e Emerson Eduardo Rodrigues não são jovens preconceituosos. Têm, respectivamente, 29 e 32 anos de idade. São homens feitos que ameaçam a convivência democrática. Eles são os responsáveis por um site que estimula a violência contra minorias.
Marcos Pereira, pastor carioca de 55 anos, está sendo desmascarado por uma investigação policial e reportagens diversas. O pastor Marcos ganhou fama como negociador de conflitos em presídios e benfeitor social, mas surgiu uma face antes oculta, capaz de ameaçar de morte o ativista José Jr., fundador do AfroReggae.
Contra a dupla de Curitiba, há farto material na internet para responsabilizá-los penalmente. Foi descoberto até plano para invadir uma festa da UnB e matar estudantes de ciência política. Há notícia de desejo de atacar o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), que tem sido um parlamentar atuante. Isso tudo mostra o quanto de falso existe na propalada cordialidade social do Brasil.
Na eleição presidencial de 2010, uma agenda regressiva dominou parte da campanha. Foi estimulada pelo PSDB e aceita pelo PT. Como partidos que dominam a contenda presidencial desde 1994, PT e PSDB deveriam estipular limites para sua disputa algo fratricida. O Brasil ganharia com uma maior responsabilidade dessas legendas, que poderiam evitar o jogo baixo na hora em que brigam por votos.
A respeito do pastor Marcos Pereira, é bom que se ressalte que os religiosos em geral não devem ser demonizados como agentes de volta ao passado. É legítima a defesa de seus interesses, como a oposição à eventual ampliação do direito ao aborto. Mas a exploração da boa fé dos pobres não pode ser aceita por um estado laico.
O pastor Marcos é acusado de tortura de crianças, de relações com criminosos, de encenações de cura pela fé e até de estupro. Ele nega. Tem todo o direito de se defender. Mas é respeitável o material recolhido pela polícia depois que José Jr. veio a público denunciar um plano para matá-lo.
O AfroReggae é mais do que um grupo cultural ou uma ONG com trabalho social nas favelas cariocas. Exemplifica o avanço civilizatório do Brasil. É o retrato de uma sociedade capaz de se mobilizar na própria defesa, sem depender apenas de políticas públicas que muitas vezes têm as suas limitações.
O Palácio do Planalto e o Congresso Nacional fariam um bem danado se prestassem mais atenção ao que anda acontecendo em Curitiba e no Rio de Janeiro. As autoridades policiais do Rio e de Brasília têm a obrigação de proteger José Jr., para que não revivamos episódios como os de Dorothy Stang. Há muita gente boa que luta por causas boas. Merecem o nosso apoio, como o AfroReggae merece.
A presidente Dilma Rousseff deve, sim, tratar com preocupação da crise congressual. Deputados e senadores devem, sim, levar seus pleitos ao Palácio do Planalto. Mas todos eles também devem se aproximar um pouco mais do Brasil real.
(*) Jornalista e colunista da Folha de São Paulo
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