quinta-feira, 22 de março de 2012

O abismo ficou menor

Tatiana Gianini (*) 

A disparidade de renda entre indivíduos existe ou existiu em todas as sociedades, sejam as pré-industriais, caso do Império Romano, sejam as economias de mercado ou socialistas modernas. A diferença é a possibilidade de mover-se, pelo próprio esforço, de um espectro social baixo para outro mais alto, Nisso. o capitalismo é imbatível. O termo desigualdade social aparece no discurso de esquerda associado à tese da luta de classes, com os pobres no papel de injustiçados e os ricos no de exploradores. Um certo grau de desigualdade, no entanto, é natural e saudável, pois isso dá ao ser humano a perspectiva de uma vida melhor. A esperança conforta e dá impulso e coragem para inovar e correr riscos, as molas do progresso. A desigualdade em excesso é danosa. Há algo de muito errado quando uma parcela expressiva da população é privada das condições básicas da vida, enquanto uma pequena elite vive na mais nababesca abundância. O Brasil está se tornando menos desigual graças ao bom e velho capitalismo. No conjunto dos países desenvolvidos e das principais economias emergentes, nenhuma outra nação reduziu tanto a diferença entre ricos e pobres nas últimas duas décadas quanto o Brasil.

Há duas maneiras consagradas de medir a desigualdade de renda. O índice de Gini, cuja escala varia de zero, menos desigual, a 1, mais desigual, abrange toda a sociedade e é o mais usado para avaliar as disparidades sociais no Brasil. Entre 1995 e 2008, o coeficiente de Gini caiu de 0,605 para 0,549. Na comparação dos extremos da população nacional, o avanço também foi impressionante. Em 1995, a renda média dos 10% mais ricos era 83 vezes a dos 10% mais pobres. Essa relação passou para menos de cinquenta vezes em 2008.

Trata-se do melhor desempenho em um ranking de 29 países elaborado a pedido de VEJA pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Como isso ocorreu? Basicamente, quem está na base da pirâmide social brasileira enriqueceu, e quem está no topo avançou pouco ou ficou estagnado. Desde 2000, a taxa de crescimento da renda per capita das classes A e B foi de 10%. Já a metade mais pobre da população teve um ganho real per capita de 68% no mesmo período. O Brasil vive hoje um fenômeno conhecido dos estudiosos de desigualdade. Quando uma nação pobre abre sua economia, há uma fase inicial de valorização dos profissionais com nível superior. Conforme o país se desenvolve, investe-se mais em formação educacional e essa demanda é suprida. Em um segundo momemo, começam a faltar trabalhadores com baixa qualificação, e os seus salários sobem. No Brasil, um garçom, por exemplo, ganha hoje um salário quase 20% superior ao de quinze anos atrás, descontada a inflação. Já o salário de quem possui diploma, ou estuda para ter um, caiu 17% entre 2001 e 2009, segundo pesquisa da Fundação Getulio Vargas. Com isso, o padrão de vida de um subordinado fica mais parecido com o do chefe, como ilustram os personagens desta reportagem. "No Brasil, a renda dos pobres aumentou em níveis chineses, e a dos ricos, no mesmo ritmo de um país europeu estagnado", diz o economista Marcelo Neri, da Fundação Getulio Vargas. "Mais vinte anos assim e teremos um índice de desigualdade parecido com o dos americanos."

A diminuição da desigualdade ocorreu concomitantemente à ascensão de uma nova classe de milionários no país. Em 2010, os brasileiros com mais de 1 milhão de dólares disponíveis para gastar somavam 155 000 pessoas, um aumento de 6% em relação ao ano anterior. No grupo dos bilionários, a revista americana Forbes registrou em 2003 um total de dezenove brasileiros. Hoje, eles já somam trinta. Juntos, possuem uma renda de 130 bilhões de dólares, o equivalente a 6% do PIB do país. São valores impactantes se comparados com a renda de menos de 751 reais mensais com a qual sobrevivem quase 25 milhões de cidadãos, mas essa concentração de riqueza na mão dos super-ricos, semelhante à da Alemanha, não é nada comparada à de outros países emergentes. Na Índia, os trinta homens mais ricos têm o equivalente a 13% do PIB. Na Rússia, eles possuem 21 %.
 
A redução da disparidade social no Brasil tomou forma em 1994, com a chegada do Plano Real. Na década anterior, a de 80, a inflação impedia as pessoas de renda muito baixa de ter acesso ao banco, enquanto as mais abastadas possuam contas-correntes com indexadores para evitar a desvalorização do dinheiro aplicado. O abismo entre as classes sociais era quase institucionalizado. Quando a inflação foi subjugada, pedreiros, operários, empregadas domésticas e costureiras viram o valor de seu salário manter-se estável em relação aos preços dos produtos, as agências bancárias abriram as portas e eles puderam planejar o futuro. A tranquilidade macroeconômica também permitiu a sucessivos governos concentrar esforços na educação - a mais efetiva e reconhecida ferramenta de ascensão social. Desde 1996, diversos programas estatais, como o Fundef (substituído em 2007 pelo Fundeb) e o Bolsa Escola (transformado em Bolsa Família), melhoraram as condições do ensino ao racionalizar os gastos do governo e incentivar o comparecimento às aulas. Em 1990, os brasileiros passavam 3,7 anos na escola. A média agora é de 7,2 anos. "Meu pai só estudou até o 1º ano do ensino médio, e a minha mãe abandonou a escola no 9º ano do fundamental. Eu fui muito mais longe", orgulha-se o assistente administrativo e estudante paulistano Daniel Nascimento, de 21 anos, o primeiro de sua família a entrar em uma universidade.

O avanço brasileiro deu-se na contramão do ocorrido em países desenvolvidos. Mais de vinte registraram aumento da desigualdade no período de 1995 à 2008. Entre eles estão França, Inglaterra e até Suécia e Finlândia, nações exaltadas por suas sociedades igualitárias. Apanhados pelas crises recentes, esses países viram os empregos formais escassear. Além disso, em economias sustentadas em serviços e em exportação de produtos tecnológicos, o salário dos trabalhadores qualificados tende a ser muito alto em proporção ao das funções menos exigentes tecnicamente. Esse fenômeno ocorre nos Estados Unidos, onde muitas vagas para mão de obra barata foram fechadas nas últimas décadas, transferidas para a China ou para o México. Aliado ao baixo crescimento econômico, isso leva ao aumento dos índices de desigualdade de renda. Não por acaso, a disparidade entre ricos e pobres tem sido um dos principais temas da campanha eleitoral americana. Nos Estados Unidos, a riqueza nas mãos do grupo do 1% mais rico da população subiu de 8% do PIB para 18% desde os anos 80.

Crescimento econômico robusto não basta para tornar mais igualitária a distribuição de renda. Se bastasse, Rússia, Índia e China estariam experimentando uma espantosa redução na desigualdade social. O oposto está acontecendo. A disparidade de renda aumentou 24% na China, 16% na Índia e 6% na Rússia desde 1995. Na Rússia e na Índia, os pobres deixam de receber serviços sociais básicos por causa da corrupção e da evasão de impostos. "De cada 100 rupias destinadas pelo governo indiano aos mais pobres, só 10 chegam até eles", diz o sociólogo Rafael Díaz-Salazar, da Universidade Complutense de Madri, na Espanha. Além disso, um terço dos indianos não sabe ler nem escrever (no Brasil, o analfabetismo é de 10%). Já a China melhorou a qualidade da educação, mas é prejudicada pela informalidade no mercado de trabalho, com impacto negativo no valor dos salários e na arrecadação de impostos.

Segundo o senso comum, nas sociedades pré-industriais, assim como nos países comunistas, os níveis de desigualdade de renda eram menores. De fato, o índice de Gini do Império Romano era equivalente ao dos Estados Unidos hoje. A estatística, porém, é perniciosa, pois leva a uma conclusão falsa. Em Roma praticamente não existia uma classe intermediária. Havia uma grande massa de miseráveis e uma pequena parcela, de menos de 1 % da população, de pessoas com um bom padrão de vida. Ou seja, a igualdade se dava na pobreza. O mesmo ocorre em países comunistas como a Coreia do Norte e Cuba. No mundo moderno, a igualdade almejada é a da classe média, situada entre ricos e pobres. Pela primeira vez, esse grupo intermediário representa mais da metade da população do Brasil. Justiça social se consegue com uma boa dose de capitalismo.

(*) Jornalista

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