Na geração dos políticos dessa faixa indefinível da meia-idade, próxima da "curva perigosa dos 50", o ministro Antônio Palocci reluz como estrela rara. O seu talento desconcerta e seduz. Dos mais habilidosos, dizem que sabem dar nó em pingo d"água. De Palocci pode-se dizer mais: ele dá nó em pingo d"água e o pingo d"água ainda aplaude. Essa arte não é boa nem má, que fique bem claro. Ela não o transforma num homem virtuoso, assim como não inscreve em seu caráter a marca da dissimulação (tomemos cuidado com o julgamento moral, ou melhor, tomemos cuidado com o moralismo). Essa arte apenas o capacita para o jogo político, do qual ele tem sido um praticante exímio.
Ministro da Fazenda do primeiro governo Lula, ele pôs de pé uma construção impossível: manteve a política econômica inaugurada pelos tucanos, enquanto a comunicação do Palácio do Planalto só se referia à gestão de Fernando Henrique Cardoso para xingá-la de "herança maldita". Palocci foi escalado para manter vivo o que seu governo prometia sepultar e deu conta da tarefa com enorme sucesso. Muitos petistas que o patrulhavam pelas costas, a portas fechadas, batiam palmas para ele em público. Empresários e banqueiros o consagraram como o interlocutor confiável, o lastro da estabilidade. Não fosse a quebra do sigilo bancário de Francenildo Santos Costa, Palocci teria despontado como possível sucessor de Lula.
Depois da derrapada, ele passou quatro anos como deputado, discreto, reservado, até ressurgir com força na coordenação da campanha de Dilma Rousseff em 2010. Em 2011 virou ministro da Casa Civil. Na prática, é hoje o coordenador dos demais ministros. O seu poder, mais que vistoso, bojudo, incontestável, é necessário: ele organiza o governo. A palavra é um tanto pernóstica, mas ao atual chefe da Casa Civil se pode colar o adjetivo "estruturante". Falemos com respeito, portanto, do homem forte do governo Dilma, um homem sem o qual o governo será mais fraco.
Por aí é que podemos aquilatar o escândalo que ganhou as manchetes da semana. É o que Palocci tem de meritório, e não o que ele tem de menor, que confere gravidade à grande dúvida gerada pela exponencial evolução de seu patrimônio pessoal declarado, conforme revelaram os repórteres Andreza Matais e José Ernesto Credendio na Folha de S.Paulo de domingo. Que um político profissional catapulte sua fortuna às alturas não chega a ser uma novidade nestas terras (vivemos num país em que voto dá lucro). Ademais, pelo que se sabe até agora, não se pode afirmar que haja crime na prosperidade galopante desse patrimônio em particular. A questão só é complicada, muito complicada, pelo lugar que o proprietário do patrimônio ocupa - pelos seus méritos, não por seus defeitos - no Palácio do Planalto. Se falássemos de um ministro periférico, seria fácil. Seus superiores hierárquicos ordenariam que ele se explicasse. O desfecho seria breve e indolor. No caso de Palocci, porém, a equação encalacrou.
Encalacrou porque a dúvida que se avoluma não é meramente jurídica ou criminal - não se trata de saber se houve ou se não houve algum ilícito, embora essa interrogação proceda -, mas é antes política e ética. Não é a lei, mas o respeito aos eleitores que impõe ao ministro o imperativo de esclarecer como é que enriqueceu assim. Ele não precisa quebrar a confidencialidade dos clientes da empresa de consultoria que manteve até o ano passado; basta que forneça informações gerais, mas plausíveis. Antes de perguntar se houve afronta à lei, a opinião pública pergunta se houve conflito de interesses - mesmo que não tipificados em lei. Que serviços essa consultoria prestava? A que preços médios? A presidente da República estava informada dessas operações quando o nomeou?
As declarações de "caso encerrado", vindas do Palácio, não respondem a essas perguntas. A manifestação do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, dizendo que a evolução patrimonial de Palocci merece "olhar mais cuidadoso", também não responde, além de nos brindar com uma nova aflição: qual o estatuto jurídico - e ético - de "olhar mais cuidadoso"? O que devemos entender por isso?
Para tumultuar ainda mais o cenário a Casa Civil enviou aos congressistas, na terça-feira, uma mensagem com a seguinte afirmação: "A passagem por Ministério da Fazenda, BNDES ou Banco Central proporciona uma experiência única que dá enorme valor a esses profissionais no mercado". Lá pelas tantas, a mensagem cita nominalmente outros ex-ministros, de outros governos, que também enriqueceram. Com isso a nota da Casa Civil põe mais dois problemas no tabuleiro. Primeiro, parece autorizar a porta giratória entre o Estado e interesses privados, uma prática que as democracias tentam inibir. Depois, pretende estender a ex-ministros que exerceram ou exercem no mercado atividades conhecidas, com cartão de visita e placa na porta do escritório, a mesma dúvida que paira sobre as operações privadas do chefe da Casa Civil. A analogia não vale - e tem sabor de provocação ou de ameaça. A dúvida continua.
Nesse caso, como em poucos outros, se evidencia a diferença entre a esfera da lei e a esfera da ética. A primeira impõe a norma e estabelece punições aos infratores. A segunda lida com escolhas entre alternativas igualmente lícitas, cujos efeitos podem ser bem distintos. É lícito que um cidadão, em dia com suas declarações de renda, não queira prestar contas ao público sobre seus negócios. Nada de ilegal nisso. Mas será essa a melhor escolha para o ministro e para a Presidência da República? Se o governo quer merecer a confiança da sociedade, deve prestar contas. Sem moralismo, sem prejulgamentos, os eleitores esperam. No coração do poder, porém, nem sempre vence a transparência. Nem sempre a legitimidade prevalece. No coração do poder, às vezes triunfa o poder sem coração - e então, um dia, ele cai.
(*) Jornalista, é Professor da ECA-USP e da ESPM
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