Opinião do Estadão
Embora a Constituição seja clara e objetiva quando afirma que os servidores públicos não podem ganhar acima dos vencimentos dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), hoje fixados em R$ 26,7 mil, vários setores do funcionalismo continuam não medindo esforços para interpretar esse dispositivo conforme suas conveniências corporativas, recorrendo aos mais variados expedientes com o objetivo de furar o teto salarial da administração pública.
Para tentar justificar o pagamento de vencimentos acima do permitido pela Constituição, alguns órgãos da administração pública chegaram às raias do absurdo, criando penduricalhos salariais como "auxílio paletó". Os abusos proliferaram de tal forma que não restou ao Congresso outra saída a não ser aprovar emendas constitucionais (EC) reforçando o que a Constituição já previa, quando foi promulgada, em 1988. Aprovada em 1998, uma dessas emendas - a EC 20 - determina que juízes, desembargadores, promotores e procuradores devem ser "remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória".
Mesmo assim, os abusos continuam prevalecendo, levando a situações paradoxais, como a que vem sendo enfrentada pelo Ministério Público (MP). Enquanto no âmbito da União o Ministério Público Federal abriu três ações judiciais contra os supersalários que são pagos pelo Legislativo e Executivo, em pelo menos cinco Estados, promotores e procuradores criaram uma espécie de "bolsa-aluguel", que varia de R$ 2 mil a R$ 4,8 mil e está sendo paga até mesmo a quem já está aposentado. Ao todo, como foi divulgado pelo Estado, em reportagem publicada domingo, 950 profissionais estão ganhando esse benefício. Até o corregedor do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) - o órgão encarregado de promover o controle externo da instituição - recebe o beneficio. Em média, os promotores ganham R$ 15 mil mensais e os procuradores, R$ 24 mil.
Com o auxílio para pagamento de aluguel, que vem sendo concedido inclusive a quem já tem casa própria, vários promotores e procuradores acabam ganhando mais do que os ministros do Supremo, o que é proibido pela Constituição. Para justificar esse benefício, os cinco MPs que estão em situação irregular - Amapá, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia e Santa Catarina - alegam que as leis orgânicas aprovadas pelas Assembleias Legislativas de seus Estados os autorizam a pagar o aluguel de promotores nas comarcas onde não há residência oficial para eles.
O argumento é duplamente absurdo. Em primeiro lugar, porque as leis estaduais não podem se sobrepor à Constituição - e esta não prevê a obrigatoriedade de residência pública para promotores. E, em segundo lugar, porque não faz sentido órgãos como o Ministério Público terem moradias oficiais em cada uma das mais de 5,5 mil cidades brasileiras. "É surreal. Num país com tantas carências, imaginou se a União tiver de construir residências para todos os membros da Justiça e do MP?", comenta Achilles Siquara, do CNMP. "Há uma burla evidente", diz o conselheiro Almino Afonso.
Para apurar os abusos, o CNMP abriu em fevereiro uma investigação e, após dois meses de trabalho, constatou que, além de pagar um benefício flagrantemente ilegal, os cinco MPs já o incorporam como remuneração permanente aos salários de todos seus membros - inclusive os aposentados. Com base nessa constatação, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil já anunciou que entrará no STF com uma ação de descumprimento de preceito fundamental contra esses cinco MPs e questionará a constitucionalidade de suas leis orgânicas. Por ironia, a iniciativa não conta com a simpatia dos juízes federais - apesar da inconstitucionalidade da "bolsa-aluguel", a corporação passou a pleitear sua concessão, a título de "simetria de tratamento funcional". Essa é mais uma amostra da audácia de algumas corporações do funcionalismo, que se imaginam acima da Constituição que juraram respeitar.
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