quinta-feira, 14 de abril de 2011

Prevenindo tragédias

Hélio Schwartsman (*)

Introvertido, ele se relacionava melhor com computadores do que com pessoas. Na adolescência, sofreu "bullying" por parte de seus colegas de escola, especialmente as meninas. Há casos de doença mental na família biológica, e, de acordo com um dos irmãos adotivos, ele próprio, quando criança, chegou a receber um diagnóstico psiquiátrico e ser medicado com drogas controladas, as quais descontinuou por conta própria. Tinha um lance esquisitíssimo com a religião (mesmo para os que consideram normal acreditar num Papai do Céu que dita livros obscuros dos quais espera que deduzamos o que Ele quer de nós). Segundo uma tia, cultivara o hábito de ler manuais de fabricação de explosivos e manuseio de armas, além de pesquisar atentados terroristas, com predileção por homens-bomba do Oriente Médio. Comentou com empolgação o 11 de Setembro. Buscou informações sobre um curso de tiro. Desde a morte da mãe adotiva, há dois anos, isolou-se ainda mais e só se vestia de preto.

Essas informações, retiradas dos vários e por vezes contraditórios perfis de Wellington Menezes de Oliveira --o atirador de Realengo-- publicados nos últimos dias, levam a uma conclusão inequívoca: por que, mesmo com tantos sinais de que as coisas iam mal na mente do rapaz, ninguém fez nada para ajudá-lo e, assim, impedir a tragédia do último dia 7?

É mais fácil dizer do que fazer. Sempre que contamos uma história de trás para a frente, isto é, já sabendo o que aconteceu no final, somos vítimas de uma ilusão cognitiva que, em inglês, leva o nome de "hindsight bias", algo como "viés do retrospecto". O melhor exemplo talvez seja o de Pearl Harbor. Nos meses que antecederam o ataque japonês à frota norte-americana ancorada no Havaí em dezembro de 1941, os EUA haviam recebido alguns sinais. Num despacho interceptado pela Inteligência Naval, Tóquio pedia a um espião lotado em Honolulu que transmitisse informações detalhadas sobre o porto e a disposição das belonaves ali fundeadas. Nos primeiros dias de dezembro, os EUA também descobriram que a Marinha japonesa havia, pela segunda vez no mês, trocado todos os seus códigos de comunicação, uma medida muito pouco usual com vistas a dificultar a identificação das embarcações. Também nos dias que antecederam o bombardeio, foram captadas mensagens do governo japonês endereçadas a várias embaixadas e consulados ao redor do mundo, nas quais os japoneses pediam que seus diplomatas destruíssem todos os códigos e documentos confidenciais em seu poder.

Nós, que sabemos o que aconteceu em 7 de dezembro de 1941, tendemos a ser peremptórios: inteligência e militar são dois termos que se repelem. Só que o problema é recorrente e envolve também serviços civis. O mesmo aconteceu no 11 de Setembro de 2001 e, em 2009, no frustrado atentado de Natal contra um voo da Delta-Northwest.

A verdade é que a Inteligência vive o dilema de todas as burocracias: como distinguir, dentre as centenas ou milhares de dados que os vários agentes coletam todos os dias, aqueles que são realmente importantes dos que são apenas ruído?

Como explica o físico Leonard Mlodinov em "The Drunkard's Walk: How Randomness Rules our Lives" (o andar do bêbado: como o acaso comanda nossas vidas), "em qualquer cadeia complexa de acontecimentos, na qual cada evento se desdobra com algum elemento de incerteza, há uma assimetria fundamental entre passado e futuro". Um caso paradigmático dessa assimetria é a previsão climática. Depois do temporal, qualquer meteorologista pode explicar que as chuvas "sem precedentes" ocorreram porque a frente fria se moveu da maneira tal e tal, enquanto a massa de ar quente percorreu o trajeto tal. Eles têm bem menos sucesso quando sua missão é dizer como as frentes vão se comportar daqui em diante. A diferença está no fato de que, no presente, as massas de ar estão sujeitas a um número quase ilimitado de interações possíveis com outros elementos, o que torna inimaginável e proibitivo o número de equações necessárias para determinar seu movimento com precisão. Quando olhamos para o passado, essas interações que não aconteceram perdem todo o sentido, o que torna o terreno surpreendentemente límpido, e a sucessão de eventos, óbvia.

O "hindsight bias" também opera quando lidamos com malucos. Não é que faltem modelos para tentar adivinhar quando alguém com problemas mentais fica violento. Como escrevi num texto publicado na semana passada na versão impressa da Folha, existem vários testes que pretendem cumprir esse objetivo. Um dos mais populares entre psiquiatras é o PCL-R, desenvolvido por Robert Hare para ajudar a diagnosticar casos de psicopatia e que também se mostrou útil para antecipar comportamentos violentos. O teste é muito utilizado nos EUA para definir internações compulsórias, e, no sistema prisional, para decidir sobre progressão de pena e liberdade condicional.

O PCL-R avalia quesitos relacionados à personalidade (capacidade de mentir, sentir remorso e empatia, aceitar responsabilidade) e a história social do paciente (delinquência juvenil, episódios de descontrole emocional).

A ideia de prever o risco através de testes simples tem tanto apelo --seja para os compradores, seja para os vendedores-- que já está até na internet. Entre os vários produtos, destaca-se a família Mosaic (www.mosaicmethod.com), disponível nas versões violência doméstica (a única gratuita), figuras públicas, autoridades judiciárias, ambiente de trabalho e escolas.

Como o PCL-R, o Mosaic combina questões de personalidade com a ficha corrida, mas explora também aspectos relacionados à potencial vítima e relaciona tudo isso ao histórico de ataques. Apresenta o risco da situação numa escala de 1 a 10.

A pergunta fundamental é: esses testes funcionam? Em termos. Eles apresentam taxa de sucesso superior ao esperado se só o acaso atuasse. Mas isso só ocorre porque estamos aplicando o questionário em casos que já consideramos de risco. A analogia aqui é com o suicídio. O melhor fator preditivo para descobrir quem atentará contra a própria vida é uma tentativa prévia. O problema desse modelo é que ele não abrange os suicidas que têm sucesso na primeira tentativa.

Do outro lado a lacuna é ainda maior, se aplicarmos o PCL-R à população carcerária dos EUA, mais de 80% obterão escores altos, compatíveis com alguma psicopatia. A dificuldade é que, em determinadas coortes da população comum, sem história de crime, até 40% também atingem pontuações elevadas, como mostrou um estudo de David DeMatteo. Como no caso dos serviços de inteligência, é quase impossível diferenciar a informação relevante do ruído. Um número inimaginável de interações é sempre possível.

Onde isso nos deixa? Até poderíamos criar regras para prevenir ataques como o de Realengo. Uma possibilidade seria encaminhar a tratamento médico compulsório e monitorar os movimentos de todos aqueles que mostrassem traços de personalidade psicopática ou mesmo todos os nerds. Mas é evidente que, neste caso, estaríamos produzindo enormes injustiças, pois um número bastante considerável desses indivíduos não representa ameaça nenhuma. E é sempre possível que exista um psicopata violento autêntico que escape ao veredicto de testes e categorias psicológicas.

Outra medida duvidosa é o tal do "upgrade" no desarmamento, com o qual as autoridades federais agora nos brandem. Sou totalmente a favor do desarmamento, mas imaginar que programas de entrega voluntária de revólveres, algumas "Blitze" policiais e uma eventual reedição do referendo de 2005 possam evitar tragédias como a do Rio é uma estultice sem tamanho. Menos armas podem ajudar a reduzir crimes de momento, como homicídios em bares e em brigas de trânsito, mas não assassinatos planejados com semanas ou meses de antecedência, como foi o caso em Realengo.

Desconfio que estejamos aqui sendo vítimas de uma outra ilusão cognitiva, que é a obsessão pelo controle, à qual aludi neste espaço algumas semanas atrás. Por razões evolutivas fáceis de imaginar, o ser humano foi selecionado para achar que controla tudo. Esse é um viés que o leva a agir preventivamente, o que muitas vezes garante a sobrevivência. Leva-o também, com certa frequência, a fazer papel de bobo, tentando controlar fenômenos que não podem ser controlados. Mas, se a natureza não liga para palhaçadas e micos, tende a ser implacável com os que dormem no ponto.

E, se já é difícil para um ser humano normal admitir que a sociedade é vulnerável a certo tipo de maluco, que existem situações em que não há nada ou muito pouco a fazer, essa é uma tarefa quase impossível para um político. Assim, ainda deveremos ouvir muitas propostas estapafúrdias nas próximas semanas. Depois, por conta de um terceiro viés neurológico, o da habituação, Realengo, para a maioria de nós, se tornará uma lembrança cada vez menos vívida, e tudo voltará a ser mais ou menos como era antes.

(*) Jornalista, Bacharel em Filosofia é articulista da Folha de São Paulo

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