O governo que festeja os soldados da hora humilha com o calote as famílias dos 18 heróis brasileiros mortos no Haiti
Augusto Nunes (*)
Pela segunda vez em 2010, o Café com o Presidente deste 29 de novembro foi dedicado a integrantes das Forças Armadas. Com a animação de passista de Carnaval antigo, Lula festejou a bem sucedida operação policial-militar no Morro do Alemão. Depois de avisar que faz questão de cumprimentar os vitoriosos na frente de batalha, que visitará em breve, o chefe de governo garantiu que haverá verba de sobra para as etapas seguintes do esforço de guerra.
Dinheiro para todos e palavrórios patrióticos — esses dois ingredientes também foram usados para tornar menos amargo o Café de 25 de janeiro, que tratou da morte no terremoto no Haiti de três civis e, sobretudo, dos 18 soldados que lutavam para impedir a consumação da agonia da nação caribenha. A apresentadora Anelise Borges quis saber como se sentia o homem que estivera no cenário da tragédia e presidira o sepultamento das vítimas brasileiras. Sem pausas, a voz roufenha que desde 2003 tem algo a dizer todos os dias caprichou no tom de quem conta como é enviuvar na lua-de-mel e foi em frente:
“Olha, Anelise, realmente é muito difícil a gente deixar de se emocionar ao falar das pessoas que morreram no Haiti. (…) Eu te confesso que poucas vezes eu fiquei emocionado como eu fiquei no velório daqueles soldados, porque eram pessoas que estavam no Haiti para prestar solidariedade, pessoas que estavam dedicando a sua vida para tentar ajudar as pessoas mais pobres, as pessoas que estavam mais deserdadas no Haiti. Por isso é que eu fiquei emocionado, porque muitos daqueles jovens estavam para voltar dentro de dois ou três dias quando aconteceu o terremoto e eles morreram”.
Um drama desse calibre, ressaltou, exigia mais que o coração dilacerado e a mão solidária do presidente da República. As famílias fulminadas pela perda mereciam também reparações materiais e o permanente amparo da União. Lula contou que, no dia 21, havia remetido à Câmara dos Deputados um projeto de lei que definia os benefícios que contemplariam os parentes dos 18 militares. Tudo somado, a conta ficaria pouco acima de R$ 10 milhões. Para quem naquele mesmo dia 21 perdoara R$ 316 milhões devidos por Moçambique, o auxílio aos mortos do Haiti era dinheiro de troco.
“Você sabe que além da solidariedade, nós estamos mandando ao Congresso Nacional um projeto de lei garantindo a cada família R$ 500 mil de indenização e uma bolsa-educação de R$ 510 para cada dependente até 24 anos”, continuou Lula. A indenização seria entregue às viúvas ou, no caso dos solteiros, à mãe. “É o mínimo que a gente pode fazer para ajudar a família dessas pessoas que estavam e estão desesperadas, e pessoas que estavam lá defendendo e honrando a bandeira nacional”.
O ministro da Defesa, Nelson Jobim, entrou em ação para ordenar que tudo se fizesse em ritmo de Fórmula 1. “O dinheiro nunca vai compensar a ausência do pai ou do companheiro, mas supre em parte o papel do provedor, especialmente no apoio à educação dos filhos”, recitou também com cara de luto. Em 3 de fevereiro, o projeto foi aprovado pela Câmara e encaminhado ao Senado. O ano escolar estava prestes a começar, era preciso liberar com urgência a bolsa de estudos. Mas ninguém viu a cor do dinheiro.
SENTIMENTO DA VERGONHA
Jobim só retomou o assunto em 16 de agosto para esclarecer num comunicado que o pagamento só poderia ser autorizado depois que o Congresso aprovasse “um pedido de abertura de Crédito Especial de R$ 10.119.340,00 ao Ministério da Defesa”. Não explicou por que não pensara nisso em janeiro. O começo da campanha eleitoral adiou para depois de novembro miudezas encalhadas na pauta do Legislativo. Só em 24 de novembro o pedido para a abertura do crédito entrou na lista de votação do Senado. Faltou quórum. Ninguém sabe dizer quando será votado.
“Foi noticiado até na imprensa internacional, mas até hoje não recebemos nada”, lamenta Cely Zanin, 43 anos, mãe de dois filhos — um de 17, outro de 18. Viúva do coronel João Elizeu Souza Zanin, morto no desabamento do quartel-general da ONU, Cely imaginava que ao menos a ajuda de custo para os dois estudantes chegasse a tempo. “O ano está acabando”, sussurra a professora e bancária que faz o possível para continuar acreditando nas promessas. Nenhuma das famílias recebeu nada. Nenhuma conseguiu ser recebida pelo presidente da República.
A explicação para o calote afrontoso talvez esteja, paradoxalmente, no número de parentes das vítimas. São tão poucos que, caso morassem numa mesma cidade de pequeno porte, seus votos, somados, seriam insuficientes para eleger um candidato a vereador.
Lula também sabe que não ouvirá cobranças da oposição, muito menos dos brasileiros comuns. No País do Carnaval, um herói deixa de sê-lo quando a imprensa muda de assunto.
Os soldados da vez estão no Morro do Alemão. É lá que deve estar a cabeça de um caçador de assuntos politicamente rentáveis.
Para um governo desprovido do sentimento da vergonha, a hora dos 18 bravos lutadores tombados no Haiti já passou. Os parentes podem esperar. É o Brasil.
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