Bellini Tavares de Lima Neto (*)
Lá pela segunda metade dos anos sessenta os exames vestibulares eram muito diferentes. Cada faculdade fazia o seu e as matérias eram específicas para cada área. Ninguém que pretendesse cursar alguma escola pertencente à área de ciências humanas iria se engalfinhar com matemática, física, química, biologia. Já o pessoal da área de ciências exatas não teria que se preocupar com português, latim, história e outras. Como o meu caminho era o das ciências humanas, lá fui eu perseguir matérias como lógica, psicologia, literatura e outras. E foi precisamente estudando literatura que pensei ter aprendido algo que, com o tempo, pude verificar que estava errado. Tratava-se de uma frase atribuída a um escritor brasileiro do inicio do século XX, um talento indiscutível que viveu atormentado por sua condição pessoal. Numa sociedade rigidamente aristocrática, recém-escravagista, esse homem negro se atreveu a se tornar um intelectual e um escritor de nomeada. Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro a 13 de maio de 1881 e morreu na mesma cidade a 1.° de novembro de 1922. Foram apenas 41 anos de vida em que produziu romances como “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, “Triste fim de Policarpo Quaresma”, “Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá”, “Clara dos Anjos” além de contos, crônicas e outros. E também foram 41 anos em que sofreu com a discriminação racial que, provavelmente, causou um de seus maiores males: o alcoolismo.
Sempre me lembro de Lima Barreto quando me deparo com certos episódios e afirmativas que insistem em se manter vivos neste nosso bizarro planeta-Brasil. Uma dessas situações é o ataque intransigente que ainda se faz às empresas chamadas multinacionais. Outra delas é a verdadeira idiossincrasia que se desenvolveu contra o chamado agro-negócio. E mais uma é a que ainda recentemente voltou à cena e consiste na tentativa de imposição de restrições a que empresas com capital estrangeiro sejam proprietárias de imóveis rurais.
Não são só essas as situações quase pré-históricas que me evocam o grande nome da literatura nacional. São, no entanto, as que me ocorrem no momento. As críticas às empresas multinacionais, ao agro-negócio e à propriedade de terras rurais são resquícios flagrantes de uma época em que os dinossauros ainda não haviam desaparecido e conviviam com o regime comunista que imperava no Leste Europeu sob a denominação de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, capitaneadas pela Rússia. O regime imposto pela Revolução de 1917 e mantido a custa de muito sangue e violência se transformou no grande ícone da rebeldia mundial. O regime sobreviveu por pouco mais de 60 anos até ruir por completo sob a forma de muro caído. A sede do império construído por pura imposição aos súditos que várias vezes tentaram se safar e invariavelmente pagaram caro por isso, é hoje um dos países emergentes do mundo. O que parecia ser uma grande potência dividindo o planeta, não passava de uma grande farsa. Enfim, foi uma tentativa concreta que se comprovou um fracasso.
Nada disso, no entanto, é suficiente para que os órfãos dessa experiência que não deu certo se convençam disso e abandonem o que foram as bandeiras padronizadas de um sonho que virou pesadelo. As empresas multinacionais em nada diferem das empresas nacionais. Estão sujeitas às mesmas leis, atuam da mesma forma. Com um aspecto adicional: cumprem rigorosamente as regras dos países onde se instalam. E não fazem isso porque são mais ou menos bem aquinhoadas sob o ponto de vista ético. É só uma questão de estratégia. Não é economicamente viável para uma organização desse tamanho enveredar pelos caminhos do chamado trambique. Elas não teriam sequer como controlar isso ao redor do mundo. Em outras palavras, andar na linha é mais barato. Trafegar pelos atalhos da trampolinagem é uma prerrogativa que só as médias e pequenas têm. E essas são, via de regra, genuinamente nacionais.
O setor agrícola, do qual depende o abastecimento de alimentação de um país inteiro, tem que acompanhar o crescimento em quantidade e necessidades de uma população que está próxima de duzentos milhões de pessoas. Se essa atividade não se modernizar para produzir em escala suficiente para suprir as exigências, vai faltar alimento. Mais uma vez basta olhar para o mundo e constatar que, nos países em que se insistiu com a tal agricultura familiar, nada deu certo. E, coincidentemente, esses foram os países do mundo socialista que também nunca deu certo. O agro-negócio é, apenas, a profissionalização da agricultura. Fazer com que essa atividade respeite os limites legais é só uma questão de estabelecer esses limites e faze-los serem cumpridos. Insistir em que se volte ao tempo das corporações de oficio é retornar à idade média. Alguém se dispõe a voltar à idade média?
De que maneira as empresas com capital estrangeiro poderiam contrabandear as terras rurais de que se tornem donas? Será que levariam, sorrateiramente, grão por grão até que restasse apenas o nada, o vazio? De que maneira se pode controlar o uso dessas terras por empresas com capital estrangeiro? Exatamente da mesma maneira que se pode controlar a atuação das empresas multinacionais ou das que exercem o agro-negócio. Com o cumprimento da lei. Aliás, da mesma forma que se pode, perfeitamente, controlar a entrada de telefones celulares nas prisões: cumprindo a lei. E quem está encarregado de cumprir a lei não é a empresa multinacional, o capital estrangeiro, o agro-negócio ou as empresas de telefonia móvel. É o estado, o estado brasileiro. E não será com palavras de ordem, bandeiras anti-diluvianas ou rebeldia sem pé nem cabeça cheirado a mofo. É só cumprir a lei. Alguém está pronto para isso?
E com respeito ao emérito Lima Barreto, eu lhe devo desculpas. Por muito tempo andei usando seu nome como o autor de uma frase que aprendi na minha juventude: “o mal do Brasil não é a cachaça, é a burrice”. Lima Barreto nunca disse isso.
Lima Barreto nos brindou com algo muito diferente:
"O que estraga o Brasil não é a cachaça, não. É a burrice, meu caro."
(*)Advogado, agora avô e morador em São Bernardo do Campo (SPo)
Escreve para o site O Dia Nosso De Cada Dia -
http: blcon.wordpress.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário