sábado, 3 de dezembro de 2011

Catedral de Santarém: Uma nova (antiga ) história

Por Padre Sidney Augusto Canto (*)

O título deste artigo bem que poderia ser: “Os 350 anos da Missão dos Tapajós e os 250 anos da Catedral”. Semelhante a um artigo que fora publicado em 1961, no “Programa da Festa”.

Entretanto, quando falamos de História, ora falamos de fatos ou pessoas, ora falamos das interpretações e análises que se fazem dos mesmos. Tais fatos e seus personagens, ocupam um lugar (espaço) e uma data (tempo). Além disso, existe o caráter científico da História, campo no qual ela conta com a ajuda de outras ciências como Antropologia, Arqueologia, etc., bem como dos “Documentos Escritos”...

Fatos são fatos, diriam alguns, e não podem ser mudados. As interpretações que os mesmos produzem é que vão dizer se eles são mais ou menos importantes para se tornarem História.

Assim acontece sobre a nossa Catedral, achamos que muita coisa já foi escrita sobre sua antiga história e podia-se pensar que nada mais ainda haveria de ser escrito. Os livros ou artigos já publicados sobre a “História de Santarém”, de autores já consagrados como Paulo Rodrigues dos Santos, Wilson Dias da Fonseca (Isoca), Wilde Dias da Fonseca (Dororó) entre outros, que acabaram por se tornar “fonte” dos pesquisadores atuais, consagraram o FATO: 
“A Catedral de Santarém teve o inicio de sua construção em 1761, depois da expulsão dos Jesuítas”. E o “fato” foi reproduzido e hoje se encontra em novos livros e até mesmo em placas e propagandas impressas ou virtuais sobre Santarém.

Contudo, nossos prestigiados historiadores supracitados nunca nos ofereceram algum documento que comprovasse tal data. Culpa deles? Não, não podemos culpá-los pela falta de acesso a esses documentos. Alguns deles existentes nas longínquas terras Lusitanas (nas Bibliotecas de Lisboa e de Évora), outros no Rio de Janeiro ou São Paulo. Ainda hoje, mesmo com as mais diversas formas de digitalização. Alguns textos e livros continuam quase que inatingíveis para as pesquisas dos amazônidas.


No dizer do próprio Paulo Rodrigues dos Santos, em seu Tupaiulândia: “Santarém já tem um passado relativamente longo e movimentado, que está a desafiar a capacidade de pesquisas, paciência e concatenação de historiador que possa ir às bibliotecas, aos arquivos públicos e a outras fontes de informações, imprescindíveis ao narrador consciencioso e honesto”. (1)

Além da dificuldade de ir atrás dos documentos que não se encontram em nossa cidade, há também aqueles que simplesmente já foram destruídos pelo tempo, ou pelo descuido de nossos governantes (Santarém ainda hoje não possui um “Arquivo Público” para consulta dos pesquisadores), ou simplesmente porque alguns desses documentos estejam nas mãos de particulares, trancados em gavetas.

Vai daí que, de vez em quando, um novo (novo?) documento surge diante de algum pesquisador. Muito semelhante àquelas ocasiões em que estamos procurando por uma coisa e acabamos por encontrar outra que nos parece mais importante. E de fato o é.

Em 1754, o Governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado (veja foto), por ordem do Rei de Portugal, subiu o rio Amazonas a fim de executar as demarcações e os limites da Amazônia Portuguesa com a Espanhola. Dessa viagem foi redigido um documento, pouco conhecido da maioria dos santarenos e do povo da nossa região, o “DIÁRIO da viagem que o Ilmo. e Exmo. Sr. Francisco Xavier de Mendonça Furtado Governador e Capitão General do Estado do Maranhão o fez para o Rio Negro a Expedição das Demarcações dos Reais Domínios de Sua Magestade”.

Mendonça Furtado chegou a Santarém no dia 04 de novembro de 1754 e só partiria no dia 10 de novembro. Ficou estes dias para descansar a comitiva que com ele subia o rio Amazonas em direção ao rio Negro, mas também para repor os índios remadores, que foram mandar buscar nas aldeias de Cumaru (Vila Franca) e Alter do Chão (Borari), pois tão logo chegaram à aldeia do Tapajós lhes fugiram 18 índios da expedição.

O Diário é um documento tão importante quanto uma carta, um ofício ou um jornal. Relata os “FATOS” vistos e vivenciados “in loco”, pelo escrivão da frota do Governador. De suas páginas tiramos o seguinte trecho, que a priori nos interessa:

“Nesta povoação [ALDEIA DOS TAPAJÓS] foi sua excelência visitar logo a Igreja que se está fazendo para servir de Paróquia, e vendo o pouco adiantamento que tinha, lhe mandou dar seis índios para trabalharem nela, pagos à sua custa, como também deixou ordem para se comprarem por sua conta, todos os pregos e mais ferragens, que fossem precisas, para se concluir a dita Igreja, encarregando a construção desta obra ao Capitão Miguel de Faria, que ali se achava destacado”.

Temos aqui os fatos:
1) Em 1754 uma “nova Igreja” estava sendo construída para servir de “Paróquia”. 2) Estava ainda “pouco adiantada” (Alicerces? Paredes?). 3) Por conta disso o Governador, “pagou do próprio bolso” o trabalho de seis índios, mais os pregos e ferragens (a construção era deveras grande para levar pregos e ferragens). 4) Ainda, temos o nome de um “responsável pela obra”, nomeado Miguel de Faria, que era um membro do regimento da “Fortaleza”.

Diante dos fatos começam as perguntas:

Quando então começou a referida construção? De quem fora o Projeto? Por ordem de quem começou a ser construída? Porque estava tão atrasada? Porque confiar a direção do trabalho a um militar e não aos missionários da Aldeia?

Como o diário nos fala que a construção era para que a nova Igreja servisse de Paróquia, podemos logo afirmar que antes de 1753 não havia ainda sido iniciada. Justifico: Existia um crescente desentendimento entre o Governador e os Jesuítas, por conta da Demarcação dos Limites, do qual ele havia sido nomeado responsável . Em novembro de 1752, Mendonça Furtado pedia a todas as aldeias que mandassem índios e também uma colaboração de farinha e gêneros que deveriam ser usados pela tropa que subiria o Rio Amazonas. Elas deveriam vir até o “São João” de 1753. As contribuições foram poucas e os índios que vieram para a Cidade de Belém fugiam sem parar, voltando a se esconder nas Missões dos Jesuítas (inclusive, alguns dos “fujões” eram da Aldeia do Tapajós) e dos Capuchos (Franciscanos).

Some-se a isso, o desentendimento entre o Bispo do Pará, Dom Frei Miguel de Bulhões e os Religiosos da Companhia, que chegaram a impedir a sua Visita Canônica nas Aldeias e mesmo chegaram a pedir um “Breve” do Papa para que efetuassem o Sacramento da Crisma nas aldeias sem terem que o pedir ao Bispo.

Com o Bispo e o Governador indispostos com os Religiosos ambos começaram a apelar ao Rei que o governo temporal dos índios passasse à jurisdição do Estado, e para lhes atender na fé cristã se criariam as paróquias que os colocava sob a jurisdição do Bispo, tirando assim, das Ordens Religiosas, todo e qualquer “poder” sobre os indígenas e suas aldeias.

Foi assim que, em carta secretíssima, datada de 15 de maio de 1753, o Marquês de Pombal dirige-se ao irmão Mendonça Furtado, mandando que sejam erigidas em Vilas as povoações junto às Fortalezas bem como algumas fazendas e ainda mais: “e fomentando-se a vaidade natural dos mais poderosos desses Americanos, ou com a esperança do honorífico senhorio das Vilas que fundarem ou com outras honras que sejam indiferentes, por uma parte irão insensivelmente desaparecendo as Aldeias que devem abolir-se”. A idéia de Pombal era clara: Para acabar com as Missões nas Aldeias se criariam Vilas e colocar-se-iam os próprios chefes indígenas para comandá-las, sem submissão ao Missionário. No ano seguinte, o Governador já falava em erigir paróquias algumas dessas vilas, conforme carta dirigida ao irmão em 30 de setembro de 1754. (2)

Por isso, afirmamos que a idéia de se construir igrejas para serem sedes de paróquia, principalmente no interior da Província, não era assunto público antes de maio de 1753, mas já fazia parte das cartas para o Reino em meados de 1754. Como o governador estivesse junto à Fortaleza do Tapajós em fins de 1754, e já estivesse ciente de que aquela construção era para servir de Matriz para a Paróquia que se pretendia erigir, é possível que possamos situar tal construção no início de 1754. Quem sabe no futuro possa surgir um novo documento que confirme (ou não) esta nossa tese.

Não admira em nada a obra estar atrasada. Como os portugueses não eram muito dedicados aos serviços braçais, cabia aos índios (ou aos escravos) a maior parte do esforço de construção naquela época. E os índios estavam sujeitos à Missão; e não interessava ao Missionário dispor de índios da Missão para construção de uma Igreja que não fosse a da Missão, pois a mesma também precisava da mão de obra indígena para sobreviver. Era bem sabido que os Jesuítas se opunham à instalação das paróquias. Eles tinham certeza que teriam seu trabalho limitado pelo poder do Bispo, ao sujeitarem-se a ele como Párocos.

Isso não somente explica porque o Governador teve de dispor da mão de obra para a construção da Igreja como também o fato de ter que nomear um militar da Fortaleza para dirigir as obras. Naquela altura os ânimos entre Mendonça Furtado e os Jesuítas já se encontravam alterados a ponto de que a correspondência deste com seu irmão, o Marquês de Pombal, já apresentava muitas acusações e desafetos por parte das atitudes dos mesmos Missionários. E os ânimos iriam se exaltar ainda mais a ponto de quatro anos depois serem os Religiosos expulsos de suas Missões.

Sobre o projeto da nova Igreja, recordo um fato relacionado a esta viagem do Governador Mendonça Furtado. Fazia parte da Expedição um desenhista e arquiteto italiano de nome Antonio José Landi que ficou famoso por desenhar fachadas e detalhes internos de várias Igrejas na Amazônia naqueles idos de metade do século XVIII (seria dele o “desenho” de como ficaria a fachada da nova Igreja ou mesmo do seu interior?). Mas também havia, na mesma Expedição, um alemão de nome João André Schwebel, que na relação enviada por Sebastião José de Carvalho e Mello (Marques de Pombal) era descrito como: “bom Engenheiro e serviu na Infantaria, e risca o desenho bem, e serve para qualquer empresa”.

O Capitão Engenheiro João André Schwebel através do “Prospecto da Fortaleza de Tapajós, com sua Aldeia” (veja foto), desenhado por ele em idos de 1756 nos vai ajudar em parte dos nossos questionamentos acima.

O referido “Prospecto” nos mostra DUAS IGREJAS ao lado da Fortaleza do Tapajós. Uma com duas naves (uma mais alta e outra rebaixada), situada a mais ou menos meio caminho entre a Fortaleza e a Aldeia e outra com dois pisos, coberta de telha, com torre de sino (em madeira) e um sobrado ao lado (coberto de palha) e que esta situada junto ao cruzeiro e à aldeia dos índios.

Os “Prospectos" de Schwebel não eram “fotografias”, mas desenhos que procuravam dar “uma certa idéia das coisas”. Assim, podemos ver que na época da viagem de Mendonça Furtado TEMOS DUAS IGREJAS próximas à Fortaleza do Tapajós.

O desenho de Schwebel mostra claramente que uma das Igrejas TINHA DUAS NAVES (uma das quais num nível mais baixo), mas ainda não possuía torres. A nossa Catedral se enquadra perfeitamente no desenho desta Igreja, que Schwebel coloca mais ou menos a meio caminho entre a Fortaleza (aos pés dos quais se encontras as casas dos “homens brancos” que trabalhavam na Fortaleza ou já estabelecidos com o comércio que já existia Tapajós acima) e as casas da Aldeia dos Índios que tinham mais ou menos o mesmo padrão. Mas, e as torres?

Na época colonial, uma Igreja era considerada pronta (pelos que a construíam) quando o projeto original era dado por concluído. No caso, se a Igreja, em seu projeto original, deveria ter duas torres e elas ainda não haviam sido levantadas, é sinal de que não se concluíra ainda a obra.

Ou seja, em 1761 já havia a Igreja. Ela possivelmente já estava coberta. Mas não concluída. Só para constar, levantar as paredes em pedra e cal e cobri-las não era um trabalho tão demorado como se pode pensar. Poderia ser feito no período de um ano ou dois, conforme houvesse mão de obra e material. Em idos de 1754 já se conheciam as minas de calcário entre Aveiro e Itaituba, que afloram não muito longe da beira do rio. Telhas eram fabricadas nas coxas com o abundante barro da beira do rio Amazonas e as pedras existiam não muito longe da Aldeia. Madeira havia em abundância. Junte-se a isso a mão de obra e a ferragem doada pelo Governador e logo teríamos as paredes levantadas e cobertas.

O restante da construção, contudo, demorou alguns longos anos...

Já em idos do século XIX, o Botânico, Etnógrafo e Naturalista João Barbosa Rodrigues (veja foto), que esteve em Santarém em 1872 afirma que esta Matriz era “a terceira igreja; a primeira, que existia na primitiva aldeia, era coberta de telha, segundo o inventário que li [grifo meu] feito pelo primeiro vigário [pároco], era na rua do Castelo, na esquina fronteira à atual farmácia do Sr. Mattos e foi edificada pelo quarto missionário, o Padre João Maria Gorsoni em 1682; a segunda, no largo da Imperatriz, onde hoje ainda se vê um cruzeiro. Mal edificada pelo Padre Manoel Rabello, foi em 1733, reedificada pelo Padre Luiz Alvares, que ali missionou até 1746. Esta tinha junto um collegio dirigido pelos padres da companhia [grifo meu], que existia, já arruinado em 1814, sendo abandonado em 1819, depois da conclusão da atual matriz”. (3)

Não sabemos que fim levou este “inventário” (mais um dos documentos da "Tapajônia" que desapareceram). Barbosa Rodrigues lhe copiou este trecho, que nos esclarece algumas coisas, mas precisa ser corrigida em outras. A primeira correção que se faz necessária é que a PRIMEIRA IGREJA foi construída pelo Padre João Felipe Bettendorff, logo no início da Missão. Era em “taipa de mão”, construída em menos de cinco dias e tinha um altar com retabulo de morutim, onde o próprio Bettendorff pintou Nossa Senhora da Conceição no centro, ladeada por Santo Inácio de Loyola e São Francisco Xavier (4). Esta Igreja ficava aonde hoje se acha o cruzeiro, na Praça Rodrigues dos Santos (antigo Largo da Imperatriz, citado no “inventário”).

Sabemos por meio de outros documentos que houve uma nova construção ainda no século XVII (que Barbosa transcreve do “inventário” como obra do Padre Gorsoni). E, levando-se em consideração que havia uma “igreja e colégio”, no que hoje é a praça Rodrigues dos Santos (que são as edificações que Mendonça Furtado conheceu e que Schwebel desenhou em seu “Prospecto”, junto à Aldeia dos Tapajós, em 1756), a nossa Catedral é a QUARTA IGREJA edificada em honra de Nossa Senhora da Conceição no decorrer do Período Colonial, inaugurada solenemente no dia 08 de dezembro de 1819.

(*) Sacerdote santareno e foi ordenado presbítero no dia 28 de dezembro de 2001. É membro da Academia de Letras e Artes de Santarém, como escritor e pesquisador da história da sua Diocese já tendo dois livros publicados e outros dois inéditos.
Notas Bibliográficas:
(1) SANTOS, Paulo Rodrigues dos. “Tupaiulândia”. Santarém: ICBS/ACN, Gráfica e Editora Tiagão, 1999.
(2) Existe documentação da correspondência entre Mendonça Furtado e seu irmão Sebastião José (Marques de Pombal) na Biblioteca do Arquivo Público do Pará.
(3) RODRIGUES, João Barbosa. “Rio Tapajós”. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1875.
(4) BETTENDORFF, João Felipe (Padre). “Crônica dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão”. Belém: FCPTN/SECULT, 1990.

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