Luiz Caversan (*)
Véspera de Natal, final de tarde, lá vinha ele ziguezagueando pela rua de terra, entrando de casa em casa --naquele tempo, as casas mantinham portões destrancados e portas sempre abertas aos amigos.
E ele era um grande amigo, o seu Antônio. Discreto, trabalhava dia e noite em sua oficina de fundo de quintal, onde produzia santinhos e relicários que mandava para os vendedores que abasteciam as festas de santos do interior Brasil afora.
Pouco saía de casa, a não ser para breves passeios com a mulher Alfonsina. Ou para ir à padaria, mercadinho e quetais.
Mas havia duas ocasiões no ano em que ele se transformava completamente. Uma delas era na noite de Santo Antônio, em junho; a outra, véspera de Natal.
Todo 24 de dezembro, a partir da hora do almoço, seu Antônio começava a encher a cara com aquele vinho clarete que mantinha num garrafão escondido.
E bebia bem, o seu Antônio!
Bebia, tirava do armário sua velha sanfona (seria um bandoneón?) e adentrava as casas dos vizinhos para desfiar intermináveis canções de Natal.
Pedia licença, cumprimentava a todos, sentava e tocava de maneira pavorosamente desafinada e cantava que cantava.
E o pior: ninguém entendia nada do que ele falava!
Nós crianças achávamos que era coisa de bebum, que a gente não entendia porque ele não estava falando nada com nada mesmo.
Terminada a "canção", lá ia ele para a casa seguinte, onde repetia a dose.
Detalhe: em cada casa seu Antônio ganhava também mais uma dose, normalmente de vinho.
Ou seja, quando chegava no final da rua (rua Heloisa Penteado, Vila Esperança, zona leste de São Paulo), ele já estava completamente embriagado e sem condições de voltar para casa.
Nesta hora um de nós corria para avisar a dona Alfonsina que o inevitável acontecera. E lá vinha ela cheia de paciência para levar seu homem para casa.
Foi com o seu Antônio que eu aprendi, como já contei aqui, a ser devoto de Santo Antônio. Por causa da seguinte peculiaridade: ele, seu Antônio, não o santo, era anarquista.
Mas como, anarquista e devoto de santo?
Pois é, dizia ele, se for verdade mesmo e existir céu e informe, Santo Antônio vai quebrar meu galho na hora H...
Grande seu Antônio e suas canções ininteligíveis, cujas letras intrincadas não tinham nada a ver com a bebedeira, não.
Seu Antônio nascera no País Basco, na Espanha, e portanto cantava em sua língua natal, a "euskara", aliás uma das mais intrincadas do planeta --não possui raiz latina nem anglo-saxã e parece que nenhuma outra conhecida.
O que não impedia o velho espanhol basco de, todos os natais, transmitir sua mensagem de carinho e solidariedade aos vizinhos.
O que com esta doce lembrança repito aqui agora e para todos os leitores, no idioma original do amigo da minha infância:
Eguberri On!
Ou seja: Feliz Natal.
(*) Jornalista e consultor na área de comunicação corporativa da Folha de São Paulo.
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