Sandra Cavalcanti (*) para o Estado de São Paulo
Após meio século de descaso e equivocada visão social, as autoridades da cidade do Rio de Janeiro estão tentando uma solução mais legal e menos populista. Sem ideologias nem objetivos eleitoreiros, elas entenderam, afinal, que é impossível manter comunidades "diferenciadas" dentro de uma área urbana sem ferir a igualdade dos cidadãos. A inclusão social dos moradores das metrópoles depende inteiramente da inclusão legal.
A inclusão legal significa o seguinte: para ser um cidadão urbano legal o cidadão deve morar em imóvel legalmente construído, seja próprio ou alugado; e deve também pagar todos os impostos, taxas e tarifas fixados por lei. Ou seja, todos os serviços dos quais é usuário: de água, de esgotos, de energia, de iluminação pública, de limpeza urbana, de coleta de lixo e de telefone. Exatamente como os demais cidadãos de sua cidade.
Essa sua contribuição lhe permite exigir retribuições: escolas de primeiro e segundo grau, postos de saúde, postos policiais, transporte coletivo oficialmente registrado, atendimentos de emergência, redes de esgotos, Correios, vigilância sanitária, vias de acesso com segurança, enfim, todo um conjunto de benefícios. Nada de favores do poder público! Hoje, na quase totalidade das favelas, quando alguns desses serviços existem, são considerados "bondades" oferecidas pelos que ali exercem o poder paralelo! Cobram o que querem, dão ordens às famílias, apavoram as mães, aliciam os jovens e os corrompem, fabricando bandidos...
A ilegalidade consentida foi piorando muito ao longo dos anos. Chegou ao seu auge na década de 1980, quando o então governador Leonel Brizola entregou as favelas do Rio, como capitanias hereditárias, aos seus associados políticos. Fez mais: proibiu que qualquer autoridade subisse os morros ou entrasse em suas vielas para estabelecer a ordem pública ou dar segurança aos seus moradores.
Vale, pois, perguntar: se a causa verdadeira dessa tragédia criminosa era do conhecimento de todos, por que nunca antes havia sido enfrentada de forma correta? Por que as autoridades do Rio deixaram o poder paralelo chegar até onde chegou?
Por conivência. Por cumplicidade. Por interesses pessoais. Pela importância eleitoral desses redutos de votos dominados. Minas de ouro de lucros obscuros.
Foi a industrialização do País que detonou os movimentos migratórios. Eles estão na origem das primeiras favelas. A partir de 1930 e, principalmente, após 1950, esse processo ocorreu em todas as cidades grandes. E ainda não parou. Nem a nova capital da República escapou. Ao contrário, ela sofre no presente os mais intensos sintomas dessa terrível doença: a maioria da população brasiliense mora nas dezenas de favelas que circundam o equivocado projeto urbanístico de Brasília.
Muitos estudos revelam que, nas favelas, as comunidades se comportam de modo diferente. Instalados ali sem a proteção de autorizações legais, os seus ocupantes acabam perdendo a noção de que existem leis para serem observadas e cumpridas.
Essa situação contamina todos os setores da comunidade. Eles não adquirem o hábito de cumprir o que determinam as leis. Isso não faz parte de seu dia a dia. O Estado, para eles, não existe. O poder, ali, é exercido por quem dispõe de força.
Só obedecem a quem pode intimidá-los: ou ao político que lhes arranjou aquele espaço; ou ao traficante que lhes emprestou dinheiro para a laje; ou ao miliciano que, em troca de uma suposta proteção, cobra uma taxa camarada.
Privados de serviços públicos legítimos, esses moradores são obrigados a pagar água, luz, taxa para edificação e "proteção". Um sistema de "impostos" paralelo, que nada perdoa.
Diante desse quadro, é extraordinária a coragem e a correção do modelo que vem sendo posto em prática pelo atual chefe da Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. A operação de resgate da cidadania dos moradores de favelas, embora esteja custando uma fortuna em matéria de recursos públicos, está sendo uma inesperada e gratificante surpresa para nós, cariocas!
Quem sabe, diante de tão magnífico exemplo, os três Poderes, em Brasília, acordem para a realidade e se disponham, também, a realizar uma operação semelhante? Quem sabe eles resolvem trazer o governo de volta ao clima de legalidade? Uma "UPP" no Planalto? Sim. É disso exatamente que estamos precisando. Exigir um comportamento mais decente de todos os que ocupam cargos de comando no governo. Punir todos os que, nas legendas que formam a famosa base de governo, agem como os traficantes apadrinhados, aqui, no Rio, pelo caudilho brizolista, com a garantia da impunidade.
O êxito das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) veio mostrar que é possível dar um choque de ordem nessas áreas apodrecidas. Sem uma operação corajosa a favelização política que ocorre hoje, no Brasil, vai continuar pelo País afora. E quem são os assaltantes que desviam dos cofres públicos o suado dinheiro arrancado dos brasileiros? São líderes de partidos e de sindicatos. Que são até aplaudidos pelos comparsas. Qual a punição? Perdas de ministérios? Aposentadorias? Afastamentos? Tudo para inglês ver... A mesma embromação usada para os favelados: discursos, obras cosméticas, teleféricos caríssimos, passarelas McDonald's-Niemeyer
O alvo das UPPs é simples: o morador da favela deve poder viver legalmente, sob a proteção das leis. Como qualquer outro cidadão, com os mesmos direitos e os mesmos deveres. Pois esse deve ser, também, o alvo para o País. Roubo praticado por companheiros e aliados é crime. É ato ilícito. Vai contra a lei.
Se uma "UPP" em Brasília não for instalada, se as punições não vierem, se a contemporização continuar, se o império da lei vai esperar o início do ano que vem, se aqueles milicianos e traficantes não forem punidos, então teremos alcançado uma façanha impensável: o Brasil será a maior favela do mundo!
(*) Professora e Jornalista, foi deputada federal e constituinte.
E-mail: sandra_c@ig.com.br
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