terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Entendendo o Barcelona

O todo é mais do que a soma das partes ou o jogo Barcelona-Santos

Manuel Sérgio (*)

Por quatro golos, sem resposta; com duas bolas nos postes dos adversários; e 72% de posse de bola – o Barcelona “esmagou” o Santos, no jogo final do Mundial de Clubes. Porque me considero luso-brasileiro (não legalmente, mas pelo coração), eu fui, naquele jogo, que contemplei pela TV, um “torcedor” do Santos.

No entanto, findos os primeiros 45 minutos, já a superioridade do Barça era tão evidente, que não me restava senão aceitar desportivamenter a derrota e refletir sobre as razões de tamanho desnível entre os dois clubes, incluindo entre os jogadores de maior valia técnica, o Messi e o Neymar: as rajadas impetuosas do Messi foram o corolário do dinamismo organizacional de uma equipa onde o todo é mais do que a soma das partes; a ineficácia do Neymar foi o resultado do trabalho de uma equipa onde o todo é menos do que a soma das partes.

Em qualquer complexidade sistémica, fomenta-se a relação todo-partes de modo que esta dialética permita a emergência de qualidades que, por si sós, nem as partes nem o todo possuem. O que era Barcelona, sem o Messi? Muitíssimo menos do que hoje é. O que era o Messi, sem o Barcelona? Igual ao Neymar!

Este, em entrevista televisiva, afirmou, convicta e humildemente, que o Barcelona acabara de dar ao Santos uma aula de bom futebol. E não só de bom futebol, mas também doutros temas que é preciso saber no futebol, como em qualquer outra área do conhecimento.

Entendo agora por que o escritor catalão Enrique Vila-Matas, um dos grandes escritores da atualidade, faz parte de um grupo de intelectuais que, periodicamente, se reúne com Pep Guardiola...

Não, não estou a dizer que o Enrique Vila-Matas sabe mais de futebol do que o Guardiola. Sabe menos! Mas da relação entre os dois (porque o futebol é uma atividade humana e não só uma atividade física) o Guardiola enriquece os seus conhecimentos do futebol e o Enrique encontra novos motivos (incluindo os estilísticos e os retóricos) para os temas da sua prosa.

Hoje, em qualquer comunidade científica, a multi e a interdisciplinaridade são procedimentos básicos. Por que o não são, na esmagadora maioria dos clubes de futebol? Porque se desconhece que só sabe de futebol quam sabe mais do que futebol (e de medicina quem sabe mais do que medicina e de direito quem sabe mais do que direito e de economia quem sabe mais do que economia, etc., etc.).

Não há área do conhecimento que não se desenvolva, sem uma sistemática relação com as demais áreas do conhecimento. A complexidade do real exige a complexidade do pensamento e da ação. E o futebol é bem mais do que a técnica e a tática.

Estou certo que o Pep Guardiola sabe tudo isto o que venho de escrever e acredito que já tenha tentado recriar o futebol que lidera, como trabalho que cria conhecimento. Há uma revolução a fazer no futebol.

Estou certo que já começou, no Barcelona. Se não laboro em erro grave: está prestes a começar no Sport Lisboa e Benfica de Luís Filipe Vieira, Domingos Soares de Oliveira e... Jorge Jesus!

“Todo o conhecimento, mesmo o mais físico, é uma produção bio-antropológica, social, cultural, noológica” (Robin Fortin, Compreender a Complexidade, Instituto Piaget, p. 241). Que o mesmo é dizer: no futebol, a preparação física depende dos grandes objetivos que animam a equipa.

O próprio jogador genial encontra-se em rede com os seus colegas. Compreende-se o Messi, sem o Xavi e o Iniesta? Mas também o todo é mais do que a soma das partes, se se desconhece o papel das emoções, no comportamento de uma equipa de futebol.

Ainda há pouco um aficionado do Barcelona me garantia que o seu clube apresenta uma indelével marca política (que não partidária): “O Barcelona, mais do que os ideais de um clube, representa os grandes anseios políticos da Catalunha”. Talvez seja por isso que muitos dos jogadores que a publicidade mais idolatra, das outras equipas, pareçam viver num mundo fictício, convencional, artificial, gritando um clubismo declamatório e balofo, nos órgãos da Comunicação Social e saltitando nas revistas cor-de-rosa, de mãos dadas com jovens artistas (ou desportistas) de quem se contam grosseiras anedotas.

Ao invés, o Messi, o Xavi e o Iniesta, não sendo monges nem deixando de ter vida afetiva, dão bem a entender que, mesmo nas suas horas de ócio, não deixam de cuidar do seu “treino invisível”. De facto, fogem daquilo que não interessa, para brilharem (com luz inusitada) naquilo que verdadeiramente lhes interessa.

O Barcelona é a melhor equipa de futebol do mundo. E por que? Em primeiro do mais, porque, nela, o todo é mais do que a soma das partes. E aqui as partes não são só a técnica e a tática e o físico – mas também o intelectual e o moral. E até os aspetos epistemológicos, que o Pep Guardiola também já mostra entender.

*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.
Esse texto foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal.

(*) Licenciado em Filosofia; doutor e autor de 38 livros. Professor catedrático aposentado da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa.
E-Mail: manuelsergio@universidadedofutebol.com.br

Um comentário:

  1. Papai Noel23/12/11 11:51

    Caro Antenor
    O assunto em pauta é o desempenho do Santos diante do Barcelona e os desdobramentos relativos ao chamado futebol brasileiro, vou lhes dizer o que, para mim, ficou claro.
    Aquilo não foi mais que mais uma demonstração contundente da diferença entre o primeiro e o terceiro mundo. Lá pelos idos dos tempos quando Didi buscando a bola no fundo das redes, caminhando mansamente até o meio do campo e dizendo: “vamos encher estes gringos de gol”, os europeus eram chamados pejorativamente de “cinturas-duras”. Os brasileiros, cheios de ginga, de malandragem, de malicia, colocavam os gringos na roda e se fartavam de ridicularizá-los. Eles não tinham qualquer aptidão para o esporte, nenhuma habilidade individual. E o Brasil reinou soberanamente de 1958 até 1970. Depois disso, esses tais gringos resolveram que era tempo de encontrarem meios e recursos que os colocassem em condição de disputa com os mágicos da bola. Então veio a Holanda de 1974 que repetiu a dose em 1978 e só não foi bem sucedida nas duas vezes porque, em uma encontrou a alta qualidade dos alemães e na outra, a sujeira política dos argentinos. Ai chegou 1982, quando o Brasil parecia recuperar o vigor e a oxigenação. Mas foi mais ou menos como a visita da saúde. Então veio 1990 e sua mais grotesca lembrança. 1994 foi a ode à burocracia. 1998 foi a repetição de 1950 mas com direito a um baile ao som da harmônica francesa. Já eram os europeus mostrando que já fazia tempo que tinham deixado de ser o bando de “gringos cintura-dura”. E o Brasil permaneceu deitado em berço esplêndido, tal como vinha fazendo desde 1974 quando simples e arrogantemente ignorou o fenômeno holandês e depois levou um sonoro 2 a 0 sem apelação. Um cochilo dos europeus permitiu que o Brasil se lambuzasse em 2002 mas já em 2006 tudo voltou ao normal. E agora, com o Barcelona,mais uma vez a Europa se curva diante do Brasil. Para agradecer as palmas.
    O Brasil, em matéria de futebol, se prevaleceu de um talento espontâneo que, no entanto, logo foi igualado e superado por aqueles que plantam, cultivam e colhem. A diferença é que a colheita do que é plantado tem um prazo de aproveitamento muito maior que o que é nativo.
    No Brasil, melhor denominado Bananalia, tudo funciona assim. Aproveita-se do que a natureza dá. E ela dá muito. Mas, quando se começa a depender do que o homem pode ou deve produzir, tudo vai por água abaixo porque, se de um lado, a natureza é pródiga, de outro, os habitantes são inertes, indolentes. Isto aqui já foi a terra do látex, da cana-de-açucar, do café, da laranja, da soja. Aos poucos vai perdendo posições para os outros que, longe de se esparramarem pela rede e aproveitarem o que a natureza dá, preferem construir ou produzir com as própria mãos e capacidade. E colhem, colhem, colhem. Agora, o que Bananalia anda exportando e para lugares parecidos consigo mesmo, é esse vírus incontrolável chamado “Bolsa-Familia”. Nada mais adequado e ajustado à natureza dos que por aqui habitam e lagarteiam: um dinheirinho mirrado em troca de nada, com a perspectiva da eternidade. Isso é que é viver!
    Meu caro, a decadência do tal futebol brasileiro é um fenômeno rigorosamente coerente com a essência desta terra cada dia mais insignificante. Em compensação, mantemos em alta a epidemia de dengue, doença decorrente da sujeira e da ignorância. E vamos galgando postos de distinção no consumo de “crack”. Sem falar no crescimento glorioso da corrupção que assombra o mundo. E queriam que o Santos ganhasse do Barcelona? Ora, ora, ora...

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