terça-feira, 14 de junho de 2011

A única vez que vi João Gilberto

Arnaldo Jabor (*) para O Estado de S.Paulo

João Gilberto fez 80 anos na sexta-feira passada, mas eu só o vi pessoalmente uma vez. Foi 17 anos atrás, no ensaio de um show no Ibirapuera (acho que era aniversário de São Paulo). Eu tinha virado jornalista, depois que o Collor acabou com o cinema em 1991, e me mandaram fazer uma reportagem sobre a preparação do show. E lá fui eu, na noite fria do parque, esperar João Gilberto chegar, enquanto o palco era montado. Já contei isso, na época, mas "vale a pena ler de novo".

Vinte e três horas. Começa um boato de que João não virá para o ensaio nesta noite ventosa, angustiando tietes e organizadores que esperam ver/ouvir aquele "homem-suspense", com seu jeito eclesiástico, seu ar de professor de ética, que, aliás, sempre me provocou uma sensação de culpa: "Estarei errado, comparado ao rigor artístico de João?" De certa forma, todos estamos.

Aí, chega a terrível notícia: João não virá! Mas, mesmo assim, ninguém arreda o pé. João provoca uma espécie de fé nas pessoas, que o esperam ali, entre carpinteiros malhando o cenário e uivos das caixas de som. Espera-se esse homem com a fome de alguma revelação.

Eis que, à meia-noite em ponto, faz-se um grande silêncio no parque: João Gilberto materializa-se no palco! Surgiu do nada. Ao seu lado, o irmão Vavá e o amigo do peito Krikor Tcherkessian, armênio delirante que tem arranques de paixão com a música brasileira.

E aí, percebo que o ensaio e o show do dia seguinte são partes de um fio só, não interrompido. Ninguém fala mais; um carpinteiro sussurra ao diretor Fernando Faro: "Posso bater este prego?" "Pode..." As marteladas vêm aveludadas, tímidas, respeitosas e param. João lança a voz pela noite como os primeiros traços de um quadro numa tela negra. Sua música é a pura modulação do silêncio que se instalou. Ele começa Canta Brasil. Todos se imobilizam - Daniela Thomas, emocionada, pinta cores de Matisse no cenário; a equipe de Walter Salles Jr., que filma o evento, comunica-se por telepatia e as câmeras flutuam como "ETs" mudos. Eu olho João mais de perto e vejo que ele veste calças jeans, paletó marrom e tênis branco marca Pé de Atleta e vejo intrigado que seu irmão Vavá, calvo e ungido como um frade, também usa tênis Pé de Atleta. Sinto que ali estava um indício precioso para desvelar um pouco do seu cotidiano tão misterioso. Por que Pé de Atleta? Terão os irmãos comprado tênis brancos, em doce fraternidade do dia a dia? O tênis branco fazia João mais real.

Subitamente, ele se levanta e, pisando macio no tênis, mergulha na escuridão do parque, para ouvir o teste de som, do outro lado da praça, a mais de cem metros. Corro atrás, como bom repórter principiante.

E aí, começa o mágico momento do encontro: eu, trêmulo, no meio das folhagens do parque, descubro deslumbrado que ele me conhece: "Oh... Arnaldo... Arnaldo... vejo você na televisão..." Só minha mãe me chamava de Arnaldo e, agora, seu filho, mamãe, estava ao lado do mito. Os testes do som vinham do palco e João me pergunta: "Arnaldo... (ele parecia ter prazer em escandir as sílabas meio humorísticas de meu nome), Arnaldo, que você está achando do som?"

Eu arrisco: "Os graves estão reverberando e há um vazio..." João concorda, de estalo: "É isso! Tem um vazio... Falta qualquer coisa! Tens razão, Arnaldo; a frase tem início e fim, mas não tem meio! O som não tem meio. Ouve: "Essa mulata quando dança é luxo só" - a gente ouve "mulata e só"..."

João se vira para os técnicos: "Falta o meio do som..." O chefe arrisca uma explicação tecnopoética de que o vento esgarça o som e que, no dia seguinte, no calor dos corpos da praça cheia, o som ficará denso.

Súbito, João já está no microfone (a memória me vem por cortes bruscos) e começa a cantar Ronda, de Paulo Vanzolini, que vira um gemido clássico sobre a solidão absoluta e eis que surge Rita Lee no escuro da noite ("O que vou cantar não sei... quebrei o braço; foi o tombamento do Ibirapuera... ah ah...") e senta num canto do palco enquanto Krikor soluça em meu ouvido: "Ele é o Pelé da música... o mundo o ouve de joelhos!" Aí, chega o Caetano de um show no Anhangabaú e se junta discretamente a todos que ali se movem, ciciando, com passos camuflados. Tenho vontade de perguntar: "Há perigo?.." Há, sim, há o perigo de se quebrar a fina lâmina do silêncio, de desagradar a João.

Mas, ele está agora eufórico, cantando em falsete caricato o Dobrado de Amor a São Paulo, de Vinicius e Haroldo Tapajós, com o conjunto Quatro por Quatro. Depois, quando João canta Lua Cheia, todos já estão imóveis, como se o João fosse um passarinho que pudesse voar. Alguém me segreda: "Acho que o show já é só isso; amanhã ele nem vem..."

Mas, logo depois Caetano, meio tímido, passa Coração Vagabundo, que João repassa mais lento e mais baixo e Coração Vagabundo vira um réquiem e Rita Lee canta "cola teu rosto no meu rosto" e João emenda com Nada Além e o "além" soa como se João conhecesse o "país não descoberto" que vem depois da morte.

Enquanto isso, eu penso, aflito: "Perguntar o que, ao João?" Mas, só me ocorrem banalidades, toda ideia me parece rasteira, vulgar. Nervoso, decido perguntar algo que me revele mais segredos do cantor misterioso, algo "essencial", de que os tênis brancos Pé de Atleta talvez já fossem uma pista.

De repente, vejo que João está indo embora. Apavorado, corro atrás dele, sem saber o que lhe perguntar: música, vida pessoal, política? Paro ao seu lado: "E aí, João?" Ele sorri, esperando. Atrapalhado, me sai pela boca a tal "pergunta essencial": "E aí, João... ah... ah... para onde vai o Brasil?" Ele faz uma pausa, me olha fundo e diz: "Você sabe, Arnaaaaldo...." e some na noite.

João sabia o rumo do País e, bom sinal, não parecia preocupado.

Quando ele se foi, rompeu-se o silêncio, restaurou-se a realidade e alguém berrou aliviado: "Vamos comer num japonês!?"

Foi a única vez que estive com João Gilberto, em 80 anos.


(*) Cineasta, escritor e crítico

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