Bellini Tavares de Lima Neto (*)
É só reunir dois ou três desconhecidos, seja lá em que ambiente for e, pode prestar atenção: alguma coisa de sintomático, curioso ou interessante acaba acontecendo. Estamos em quatro na recepção do banco, cada um esperando a vez de ser atendido. A moça do cafezinho, muito simpática, já nos agradou a todos. Bem à nossa frente, uma tela de televisão das grandes, vai chamando a atenção do grupinho. Até que um deles, o mais idoso de nós quatro, com um jornal nas mãos, se depara com uma noticia e resolve protestar. Larga o jornal sobre a mesinha de centro e começa a descer a ripa no prefeito que está fazendo planos para sua gestão dentro de uns 10 anos. O homem fica muito irritado e declara que só espera não estar por aqui quando isso acontecer. Alguém, então, resolve se solidarizar com ele: “que é isso, amigo? Melhor é você estar por aqui e o político que não seja reeleito”. Proposta de solução bem mais pacífica, sem dúvida. Mas o homem não está para soluções diplomáticas. “Mas aqui eu não vou estar, não. Já devia ter ido para o litoral este ano e acabei adiando. Mas, ano que vem, sem falta, eu sumo daqui.” E aí, como é costume, veio uma saraivada de críticas à cidade, a começar da proliferação de prédios residenciais que, certamente, vão entupir o trânsito. “Ninguém mais vai conseguir andar por aqui”.
Agora, o tom da conversa já estava bem mais animado e o homem que iniciou isso tudo, o mais velho de nós, resolveu expandir sua crítica ao plano federal. Trouxe à tona, então, uma das questões mais descaradas dos últimos anos e que vive sendo repetida sem o menor constrangimento: a história da “herança maldita”. Apenas para registrar no tempo e espaço, esse tem sido um dos motes do governo Silva a respeito do seu antecessor. O nosso homem, o mais velho de nós, não poupou o verbo: “esse camarada passou o tempo todo falando dessa herança maldita. O próximo é que vai ver o que é herança maldita, no duro”. Nesse momento, o outro cidadão, sentado na salinha, um cidadão de origem étnica africana (que é para não criar problemas com leis e patrulhas) queimou no golpe, como si diz por aí. E saiu em defesa do governo Silva argumentando que tudo andava muito melhor agora e que, portanto, a herança deixada seria ótima. O homem que havia iniciado a contenda carregou um pouco mais nas tintas para desafiar o defensor do Silva e o questionou sobre o que, de fato, havia melhorado. E a resposta do nosso ilustre contendor foi das mais interessantes: “você, por exemplo, está dizendo que vai para o litoral. Eu já não posso fazer a mesma coisa”. Em outras palavras, trouxe a luta de classes para o pequeno recinto. O nosso provecto personagem imediatamente respondeu que, para isso, havia trabalhado a vida inteira, o que foi imediatamente rebatido pelo primeiro com um “eu também trabalho”. Estava armado o impasse.
Nessa hora, o primeiro debatedor, o nosso amigo mais senil, iniciou um raciocínio que, confesso, me fez temer pela nossa sorte geral: lançou uma premissa, embora disfarçada de pergunta: sobre se o defensor do governo Silva era “de cor”. Recebeu em troca um sorriso irônico seguido de um comentário com todo o jeito de resposta ensaiada: “você também tem uma cor, todos nós temos uma cor”. Mas o nosso circunstante mais idoso queria, na verdade, desenvolver um argumento que passava pela libertação dos escravos combinada com a falta de apoio do governo de então, seguida da abertura das fronteiras do país para os imigrantes e a falta de oportunidade para os recém libertos. E arrematou isso tudo com a intromissão da Igreja no contexto a ponto de alargar as diferenças sociais e por aí afora. Mas, nessa hora, chegou a vez de o homenzinho afro-descendente, o partidário do Silva, ser atendido e o nosso caro senhor prosseguiu com seu libelo acusatório à Igreja Católica dirigido a nós outros, remanescentes e que ainda esperávamos para ser atendidos. O outro homem ao seu lado pareceu gostar das críticas de natureza eclesiástica, pois endossou inteiramente o que tinha sido dito. Ficou no ar a impressão que este terceiro devia ser adepto de alguma outra religião, dessas que, combativas por excelência, vivem destruindo todas as demais.
Com a falta do contendor, a peleja foi esfriando até que chegou a minha hora de ir ao caixa. Fiz o que tinha que fazer e fui-me embora pensando em tudo aquilo que havia escutado. O senhor mais idoso manifestou toda a sua indignação, mas sua atitude seria simplesmente a de tratar de ir embora e lavar as mãos. O homem de cor se limitou a repetir motes ouvidos ao longo de processos eleitorais divulgados em flagrantes interesses distorcidos. Apóia a falácia de que tudo vai indo muito bem e, de quebra, nutre a improdutiva e perniciosa rivalidade que se instalou de norte a sul, ressuscita a estéril discussão sobre “você pode e eu não”, transferindo para fora de si a responsabilidade pelo seu próprio destino. O terceiro integrante da cena, calado até então, só se manifestou quando a conversa, aparentemente, lhe proporcionou a chance de emprestar energia às criticas religiosas que provavelmente lhe agradam porque pactua de outras seitas. E eu, ouvi tudo, não disse nada, esperei minha vez para ser atendido e fui embora. Estamos todos errados? Não sei. Só fiquei pensando e tentando entender onde vamos chegar, se é que vamos.
(*) Advogado , morador em S. Bernardo do Campo (SPO).
Escreve para o site O Dia Nosso De Cada Dia - http: blcon.wordpress.com
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