Miriam Leitão (*)
O crime se infiltra na Amazônia, mesmo nas instituições criadas pra combatê-lo. Os elos se misturam e fortalecem a corrente que abate diariamente a floresta. A cada reportagem, um flagrante; a cada estudo, uma nova prova do velho problema: a mistura do legal com o ilegal na cadeia produtiva vai lavando os crimes. O Brasil avança no combate, mas é mais lento que o crime.
O Observatório Social divulgou esta semana outro estudo que começou num local emblemático: Nova Ipixuna, Pará. Lá, desembarcaram em março dois repórteres, Marques Casara e Sergio Vignes. Lá, em maio, foram assassinados dois ambientalistas, José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo. Os jornalistas investigavam o crime de uso de carvão vegetal ilegal na cadeia produtiva do aço, encontraram fornos ilegais e constataram, pelo cruzamento de dados, que as siderúrgicas do Pólo de Carajás estão usando carvão ilegal. José Cláudio e Maria denunciavam o desmatamento ilegal e foram mortos depois de avisarem que estavam marcados para morrer.
O país avança; aos poucos. O progresso usa a estratégia de construir redes de constrangimento e pressão sobre os criminosos. Mas os elos da cadeia do crime têm sido persistentes e há momentos em que se pensa que eles vencerão no final.
No documento do Observatório Social, como em outros que já foram divulgados com o mesmo objetivo, há motivos para desânimo e alívio. A boa notícia é que outras investigações que mostravam a conexão entre grandes empresas e os crimes trabalhistas e ambientais acabaram provocando pactos que permitiram avanços no combate ao trabalho escravo e degradante e ao desmatamento ilegal. Foi com movimentos assim que empresários, ONGs, governos, OIT, Ministério Público assinaram o pacto contra o trabalho escravo em 2004. Ele diminuiu o número de casos; mas não acabou com o absurdo. Houve denúncia contra a soja brasileira; compradores internacionais pressionaram, foi assinada a moratória da soja. Através dela as grandes empresas do setor se comprometeram a não comprar soja de área de desmatamento recente. Houve denúncias de que os grandes frigoríficos compram rebanhos que pastam em áreas desmatadas ilegalmente. Os supermercados foram cobrados pelos consumidores. Alguns aderiram ao compromisso contra a carne de desmatamento; outros, não. O Ministério Público iniciou então a campanha da Carne Legal. Impactantes anúncios mostravam a ligação entre o prato do consumidor e a prática ilegal. Tudo isso vai empurrando o país para a legalidade, apesar de todas as forças que se unem para manter o atraso.
Há casos revoltantes de políticos impunes ou cúmplices; de atrasos inaceitáveis em julgamentos; de perseguição a funcionários do Ministério do Trabalho ou do Ibama que apenas querem que a lei seja cumprida; de denúncias do Ministério Público não levadas em conta; de empresas que fazem vista grossa porque assim reduzem o preço dos seus insumos. De vez em quando o Brasil avança.
Um desses passos à frente foi dado quando houve a primeira denúncia contra trabalho escravo e desmatamento ilegal na indústria siderúrgica brasileira. O centro do problema era em Carajás. Ainda é. Foi criado depois da denúncia sobre os “Escravos do Aço” o Instituto Carvão Cidadão. O objetivo do ICC é exigir que todas as siderúrgicas de Carajás se comprometam a não comprar carvão ilegal, e a verificar se seus fornecedores respeitam as leis trabalhistas, garantem equipamentos de proteção aos operários e usam madeira de extração legal. Houve avanços.
O Observatório Social voltou lá em março e constatou que o crime continua. Marques Casara me disse no programa Espaço Aberto, da Globonews, que algumas das siderúrgicas locais não cumprem o que elas mesmas prometeram e lavam o crime na sua produção. Como? Misturando carvão legal, cascas de babaçu e carvão produzido em fornos ilegais. Tudo misturado faz a liga do ferrogusa que depois é exportado: 90% dos produtos de siderúrgicas como a Sidepar e Cosipar são comprados por grandes consumidoras e traders de aço como a ThyssenKrupp, NMT e Nucor Corporation. Empresas que fornecem para as grandes montadoras de automóveis americanas.
A diretora de sustentabilidade do Instituto Aço Brasil, Cristina Yuan, me disse que as produtoras de ferro-gusa do Pólo de Carajás não fazem parte da associação, que reúne apenas as grandes indústrias siderúrgicas do país. Ela garante que todo o carvão usado pelas empresas do Instituto Aço Brasil vem de florestas plantadas ou de manejo. E de fato não são elas as acusadas neste estudo. Para se separar das empresas desse grupo é que o antigo Instituto Brasileiro de Siderurgia trocou o nome para Instituto Aço Brasil.
Segundo Casara, a Vale foi procurada antes da divulgação do estudo. Ela é a única fornecedora de minério de ferro para as guseiras do Pará. A empresa disse que vai investigar a denúncia. Em outros momentos a Vale assinou pactos e assumiu compromissos de só fornecer a guseiras que não usam carvão ilegal. Tomara que a Vale investigue logo. Pelos dados do relatório, como se viu na imprensa, se forem cruzados os montantes de ferro-gusa produzido com o total de carvão legal registrado fica claro que grande parte do carvão é ilegal. Só em Nova Ipixuna os dois repórteres encontraram 500 fornos ilegais.
Toda vez que uma investigação ilumina a cadeia produtiva lá encontra os elos da cadeia do crime trabalhista e ambiental. A cada empurrão o Brasil avança um pouco. Essa é a esperança.
(*) Jornalista é colunista do O Globo
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