terça-feira, 7 de junho de 2011

Quem vai ao ar perde o lugar!

Sandra Cavalcanti para O Estado de S.Paulo

É muito triste a situação do Poder Legislativo. Pelo que se sabe e pelo que se vê, há muito tempo o Congresso Nacional não legisla. Medidas provisórias entopem as pautas. Deputados e senadores são protagonistas de escândalos diários, de todo tipo. Assuntos realmente importantes não conseguem ser debatidos e votados. As sessões são verdadeiras farsas, com discursos feitos apenas para utilizar a mídia oficial e alimentar as famosas "bases". Horas e horas de reuniões, sem quórum, são gastas para a tarefa envergonhada de carimbar tudo o que o Poder Executivo lhes impõe.

Para agravar ainda mais essa humilhante situação o Poder Judiciário vem também de avançar sobre as atribuições exclusivas do Congresso. Por decisão sua, o Supremo Tribunal Federal alterou, no texto constitucional, o conceito de família constante na Carta Magna.

O parágrafo 4.º do artigo 226 passou a ser diferente daquilo que, após dois anos de estudos, discussões e votações, foi aprovado pelos legítimos representantes dos milhões de cidadãos brasileiros. O Poder Judiciário agiu como se fosse uma Assembleia Constituinte derivada!

Acontece que esse texto, o artigo 226 da Constituição de 1988, foi uma das mais belas e difíceis conquistas da sociedade brasileira. Vale reler o seu teor.

"Capítulo VII - Da família, da criança, do adolescente, do jovem e do idoso.

Artigo 226 - A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1.º - O casamento é civil e gratuita a sua celebração.
§ 2.º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3.º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4.º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes."
O "caput" e seus quatro parágrafos foram objeto de longas e honestas discussões, durante os dois anos de trabalhos dos constituintes. Eu estava lá. Tomei parte ativa em todas as reuniões, além de ser a encarregada de levar o texto final para a Comissão de Sistematização.

Esse "caput" e seus parágrafos não foram decisões nossas, individuais, nem foram textos resultantes de pressões externas. Eles foram a fórmula vitoriosa que resultou de sucessivas votações, feitas todas sob a vigilância dos milhões de eleitores, que nos haviam delegado, por voto livre, a responsabilidade de representar, com fidelidade, suas vontades, seus comportamentos e seus valores. Essa atribuição era só nossa. De mais ninguém!

Desde 1993 até agora, todas as tentativas de alterar o conceito constitucional da família fracassaram. Diante dos muitos e insistentes projetos de lei para o reconhecimento da união homoafetiva (sic!) como "entidade familiar", como tão bem ressaltou Carlos Alberto di Franco em excelente artigo nesta mesma página, "a maioria dos congressistas sempre rejeitou a criação de uma legislação específica".

Para as correntes que lutavam por esse alvo, o Legislativo foi sempre um palco de derrotas. O Congresso continuava fiel ao pensamento da maioria da sociedade brasileira, por ele representada legitimamente. Uma sociedade que aquelas correntes consideram retrógrada e conservadora.

Acontece que, nestes últimos anos, principalmente na era Lula, os governantes do País deram fartas demonstrações de total desprezo aos processos legais e às próprias leis. Mandaram sempre as leis às favas! O caminho, então, era este: mandar também as leis às favas! E tratar de imitar o comportamento dos seus "líderes"...

Afinal, onde estiveram as leis na hora das invasões de propriedades? Na hora da punição dos corruptos mensaleiros do PT? Na hora de conceder indenizações fabulosas aos companheiros terroristas? Na hora de gastar recursos públicos em projetos condenados?

Em todo esse recente episódio, o mais insuportável para o povo brasileiro não é ver alterado o conceito de família na Constituição da República, sem ser por projeto de emenda constitucional. O mais insuportável é sentir o desmoronamento da democracia duramente reconquistada. Vivemos ainda num país em que o cidadão, de forma livre, elege para o Congresso aqueles que vão representar seus valores, suas ideias e vigiar a aplicação dos tributos que ele, com sacrifício, mal consegue pagar.

A grande pergunta do povo é a seguinte: quem delegou ao Judiciário o poder de rever e alterar a Constituição, sem obedecer ao que ela própria estabelece para esse fim?

A Constituição, que ainda está em vigor, fixa normas para emendas à própria Constituição. E estabelece, também, meios legais para que qualquer dos três Poderes possa sustar e reagir contra a invasão de suas atribuições, como tão bem lembrou o mestre Ives Gandra da Silva Martins.

Portanto, o fato mais grave no momento é essa invasão! Por mais ínclitos, sérios, honestos, competentes e patriotas que sejam, os juízes que compõem o mais alto escalão do Poder Judiciário do Brasil não poderiam, e não podem, imaginar-se representantes legislativos dos milhões de cidadãos brasileiros. Estou convencida, no entanto, de que tudo isso só aconteceu por causa do vazio legislativo em que vive o País. Esse, sim, é o pior dos dramas.

Quando, num país democrático, o Legislativo é anulado pelo Executivo e invadido pelo Judiciário, as portas para a ditadura começam a se abrir de novo. Foi sempre assim. Executivo livre do Legislativo! Executivo livre do Judiciário! Executivo fortíssimo, sozinho, soberano!

Esse filme nós já vimos...

(*) Professora, Jornalista, foi Deputada Federal Constituinte, e fundou e presidiu o BNH no governo Castelo Branco.
E-Mail: SANDRA_C@IG.COM.BR




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