Bellini Tavares de Lima Neto (*)
Definitivamente não é justo exigir que ciências como a psicologia e a psiquiatria sejam exatas. Afinal, uma coisa é calcular as fundações de um prédio que se comporta sempre da mesma maneira e outra, muito diferente e desafiante é lidar com a cabeça do bicho-homem. E, para quem só consegue levam em conta as personalidades famosas, essas que ingressam nos anais de qualquer segmento das mais diversas atividades humanas, já posso adiantar que não estou pensando em nenhuma dessas figuras que enfeitam a história da humanidade e são quase inexplicáveis. Não se trata de nada parecido com o famoso Jack, dito “Estripador”, figura que até hoje desafia a sociedade mundial por jamais ter sido identificado e preso. Esse, tendo em vista a brutalidade dos crimes praticados e as estripulias que cometeu desafiando as autoridades, enviado cartas e conseguindo desaparecer sem jamais ser apanhado, pode ser considerado uma prova de que a cabeça do bicho-homem é um mistério insondável. Afinal, o que poderia passar pelos miolos de um sujeito como aquele?
Mas, não é preciso recorrer a um tipo tão exótico para se ter como certo que não é justo exigir que a psicologia e a psiquiatria sejam claras e transparentes ou possam fazer prognósticos com grande margem de certeza. Muito menos seria necessário tentar compreender os descaminhos pelos quais se movimentam cérebros como os de ditadores que insistem em se manter no poder apesar de ninguém mais conseguir sequer lhes sentir o cheiro ou ouvir a voz. Na verdade, só é preciso andar pelas ruas, seja a pé, seja no trânsito, para se topar com certas criaturas que desafiam o mais rudimentar dos possíveis patamares de equilíbrio mental e racionalidade.
Cena rápida. São quase seis da tarde. Venho por uma das ruas movimentadas da minha cidade, a rua que ficou famoso por abrigar a maior parte das lojas de móveis que foram, um dia, um dos pontos de atração destas minhas bandas. Hoje ela ficou conhecida por outros motivos que não vêm ao caso. Lá estou eu trafegando devagar já que o movimento não permitiria mais que isso. A certa altura tenho que dobrar à direita. O farol está aberto para mim e, portanto, fechado para a tal rua à direita de onde descem veículos. Eles estão parados no farol que, para eles está vermelho. Mal faço o movimento para dobrar à minha direita e me deparo com uma motocicleta que está parada no farol. Mas está ligeiramente na contramão. Isso é relativamente comum nesse lugar. Por alguma razão que foge à compreensão de simples mortais como eu, as pessoas que descem a tal rua costumam se posicionar entre quase no meio da faixa permitida, invadindo ligeiramente a outra faixa, por onde devem subir os que vão dobrar à direita, como eu pretendia fazer. Desta vez, no entanto, não era um automóvel que se encontrava com cara sorrateira na posição errada. Era uma motocicleta. Seria de se imaginar que se para um automóvel naquela posição já existe um certo risco de que, o candidato a ingressar na rua possa lhe parar em cima, o que dizer de uma motocicleta? Não sei o que dizer da motocicleta. O que eu sei é que lá estava ela. Era uma dessas maiores, mais parrudas. E nela, montado, estava um sujeito tão ou mais parrudo.
Óculos escuros, apesar de já ser quase noite, camiseta sem mangas para que os bíceps ficassem à mostra impondo respeito, confesso que não me recordo se o individuo portava um capacete. Fico devendo essa informação que, na verdade, quase não tem relevância alguma. Topando com uma motocicleta pela frente, não vi opção senão parar e esperar que ele, tocado por um mínimo de bom senso e iguais maneiras, fizesse o veículo rolar um pouco adiante e mais à sua direita. Com isso o espaço para o meu ingresso se tornaria possível e, o que é mais importante, sem qualquer risco para ele. Convém não perder de vista que se havia algum risco de um encontrão entre os dois veículos, tenho a forte sensação de que perigo maior correria o que estava trepado sobre a motocicleta. Mas, talvez não seja assim porque o individuo se limitou a me lançar um olhar desafiador, alguma coisa intermediária entre um dragão e um “pitbull” esfomeado. E não arredou um só milímetro de onde estava. Eu também não me senti a vontade para ir adiante porque poderia acabar tocando na motocicleta, o que, imagino eu, poderia derrubá-la. Ou não, não é? Por via das dúvidas e porque não me considero nenhum exímio condutor, achei mais prudente esperar. O individuo, então, fez um sinal de desdém para me indicar que eu passasse. Nesse momento eu achei que havia alguma chance de se esclarecer a situação, abaixei o vidro do meu próprio veículo e disse a ele que se eu seguisse adiante como ele estava sugerindo, poderia causar um acidente sobre ele. Nesse momento o farol abriu e ele me disse, com ar vitorioso: “Aqui passa até um avião!”.
Com a movimentação dos veículos, o espaço se abriu e eu segui adiante. Imagino que ele também tenha seguido adiante. Mas a cena veio comigo. E com ela, algumas perguntas que eu fiquei tentando responder sem o menor sucesso: Como é que alguém, em situação flagrantemente irregular, consegue encontrar argumentos para sustentar sua posição? Como é que alguém, além de sustentar sua posição em tais circunstâncias, encontra justificativas para assumir uma atitude arrogante e desafiadora? Como é que alguém, em uma situação de risco potencial, consegue se expor a ele sem considerar que as conseqüências podem ser desastrosas? Finalmente, como é que alguém, envolvido num cenário dessa ordem e adotando um comportamento dessa natureza, não leva em conta que o desafiado pode ser alguém exatamente como ele mesmo e, nesse caso, poderia ter jogado o automóvel por cima da motocicleta como, aliás, ele mesmo propôs? Não levei mais que cinco minutos para chegar a casa, a tempo de assistir a um dos capítulos finais da novela das seis que já está na reta final. Agora é que elas ficam interessantes. Mas, continuei com as mesmas perguntas sem conseguir nem uma pista sequer. Ao contrário, de quebra, ainda acrescentei mais uma dúvida às que consegui extrair da cena bizarra: como é que alguém pode esperar que a psicologia ou a psiquiatria ou seja lá que ciência for, seja capaz de lidar com criaturas dessa ordem?
Viu como não precisa do Jack?
(*) Advogado , morador em S. Bernardo do Campo (SPO).
Escreve para o site O Dia Nosso De Cada Dia - http: blcon.wordpress.com
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