sábado, 27 de novembro de 2010

Desculpe, senhor, o sistema caiu

Bellini Tavares de Lima Neto (*)

Era uma quarta-feira cedinho. Nós éramos um grupo de funcionários da mesma empresa vindos de lugares diferentes e reunidos num belíssimo hotel na cidade de Washington. E só mesmo estando a serviços e com as despesas pagas pela empresa é que nós poderíamos estar naquele hotel. Se eu já estive num lugar chique, esse lugar foi esse hotel. Para a empresa o preço era especial, bem mais em conta já que o nosso grupo devia ter umas quinze pessoas. Por isso mesmo, o desconto era generoso. E assim mesmo, a diária ficava pela bagatela de US$250.00. Isso mesmo: duzentos e cinqüenta dólares por dia. Foi exatamente por que o preço não fazia parte da realidade pessoal de ninguém, que um dos nossos companheiros, que estava ali com a família, resolveu sair junto conosco naquela quarta feira cedinho. O grupo estava hospedado ali desde domingo, todos a trabalho que começou logo na segunda pela manhã. E, na quarta-feira, dia de levantar acampamento, cada um de volta para seu país ou para sua cidade, todo mundo retornando ao trabalho do dia a dia. Menos o nosso colega e família que iam começar umas férias na capital dos Estados Unidos. Nada melhor, é claro, que unir o útil ao agradável. Três dias naquele paraíso de luxo e conforto e o resto das férias de volta à realidade possível. E lá estávamos nós diante do caixa, um dos integrandos do grupo acertando as contas que, afinal, seriam pagas pela mesma pessoa: a empresa. Mas, a curiosidade é um veneno. O nosso companheiro perguntou, sem qualquer segunda intenção, quanto é que ele e a família tinham custado. A mocinha do caixa, então, muito compenetrada, digitou o teclado do seu computador e respondeu com muita eficiência: cem dólares. Ninguém entendeu nada, é claro. O nosso companheiro, então, argumentou que alguma coisa estava errada. Afinal, ele estava ali desde domingo, eram três dias e a diária custava duzentos e cinqüenta dólares. Mesmo em inglês, três vezes duzentos e cinqüenta não podia dar em dólares, por mais que o país fosse desenvolvido, primeiro mundo e essas coisas. Mas a mocinha repetiu que era aquilo mesmo. E começou um quase bate-boca. A mocinha foi ficando pálida, assustada e chamou sua chefe. Que chegou, olhou e confirmou os cem dólares. E ouviu a mesma coisa do nosso companheiro: a conta estava errada. Foi a vez de a chefe defender a informação e, logo depois, também entrar em pânico e chamar o gerente. Tudo se repetiu até que, finalmente, a situação foi esclarecida. Esclarecida mas sem colocar um fim naquele pânico que tomou conta do trio de funcionários. O veredicto era terrível: o sistema havia falhado.

Dependência é coisa séria. No caso do pessoal do hotel, a casa praticamente caiu quando eles constataram que o sistema tinha falhado. Pareciam aterrorizados como se um inimigo mortal tivesse dominado o lugar e eles estivessem completamente desamparados, indefesos. O sistema tinha falhado! Hoje é comum ver uma organização inteira simplesmente paralisar suas atividades e ficar inerte porque o sistema caiu. É a dependência. Ou, melhor dizendo, uma delas. Considerando vantagens e desvantagens, a dependência da tecnologia não passa do preço que se paga pelos inúmeros benefícios que se tem graças a ela. Mas, há outros e essas, sim, são terrivelmente danosas. É como se o sujeito entregasse os dois braços a alguém e se deixasse algemar. Em seguida oferecesse o pescoço para que esse mesmo alguém colocasse uma coleira e, na coleira, a correntinha nas mãos do tal alguém mesmo. A partir daí, o alguém é quem conduz, quem determina os passos e o destino do acorrentado. É isso que acontecesse com o dependente em geral. É a mulher que se dedicou apenas a cuidar da família enquanto o marido deteve o controle das finanças. Se ele resolver se aventurar por aí, lá estará ela na dependência do caráter do sujeito, qualidade que, via de regra, se descobre que não existe nem nunca existiu. É isso que acontece com o infeliz que se torna viciado em drogas, dependente de um inescrupuloso que vai lhe tomar até a alma em troca de uns restos de pó ou erva. Também é isso que acontece com os que se escravizam diante de um desses falsos profetas, esses pretensos líderes religioso que acabam manipulando uma comunidade inteira levando-a, às vezes, até a uma tragédia coletiva.

A dependência é sempre uma forma desprezível de sujeitar alguém. Que qualificação pode merecer um marido que se vale de seus recursos financeiros para oprimir a ex-esposa? O que se pode dizer de uma criatura que se vale da fraqueza humana para lhe vender drogas e depois atrelar até sua alma a seus pés? Que destino merece o que ludibria um segmento inteiro de pessoas que buscam um alento religioso lhes vendendo terrenos no paraíso? O individuo que se vale da fraqueza alheia para lhe impor sua vontade, seus interesses ou até mesmo, ainda que raramente, suas convicções, é sempre uma erva daninha que, desde o começo, estará fazendo muito mal a tudo e a todos. Os resultados podem demorar mais ou menos, os efeitos podem aparecer só tempos depois, mas, invariavelmente, surgirão porque, assim como uma bactéria, esses agentes nunca são inofensivos. Países inteiros, gerações inteiras já foram levadas aos horrores do inferno por conta dessa submissão, dessa dependência. E, um dia, acordam diante da realidade cruel: andaram na ponta da coleira, caminharam sem destino nem consciência, pensaram que estavam indo a algum lugar e descobriram que nunca saíram de onde estavam desde sempre.

(*) Advogado , avô recente e morador em S. Bernardo do Campo (SPO). Escreve para o site O Dia Nosso De Cada Dia - http: blcon.wordpress.com.

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