José Nêumanne (*) para O Estado de S.Paulo
Neste fim de semana William de Oliveira brilhou nas páginas dos jornais em várias fotografias. Uma, atual, que mereceu maior destaque, registra sua presença à mesa com Francisco Bonfim Lopes, o Nem, chefão do tráfico de drogas na Favela da Rocinha preso recentemente. A imagem, obtida e fornecida aos meios de comunicação pela polícia do Rio de Janeiro, seria o flagrante do momento em que intermediava a venda de fuzis ao traficante. Como convém a uma reunião de negócios, o ambiente parecia tenso, e não era para menos: na companhia dos protagonistas, o figurante Alexandre Leopoldino, auxiliar de manutenção na Superintendência de Engenharia e Manutenção (Supem) da Casa Civil do governo do Estado do Rio de Janeiro, segurava ostensivamente um fuzil. Em outra foto, de semblante carregado, William, também servidor público, lotado no gabinete da vereadora Andrea Gouvêa Vieira, do PSDB, que o exonerou assim que soube da notícia, aparece algemado na hora da captura. Nas outras fotos, a mesma personagem mostra seu melhor sorriso de dentes alvos ao lado de figurões da República e do Estado: a presidente Dilma Rousseff, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o governador Sérgio Cabral e o ex-governador e ex-secretário de Segurança Anthony Garotinho.
Ninguém, é claro, está imune a ter registrada uma camaradagem explícita com alguém acusado de crime grave, por uma câmera fotográfica. Personalidades públicas, como artistas e candidatos a cargos eletivos, estão sujeitas a ser surpreendidas por conexões incômodas com a publicação de imagens como essas. Acusar uma celebridade de cumplicidade com um criminoso por um flagrante infeliz seria uma irresponsabilidade. Mas merece reflexão a acusação a William de Oliveira, feita pelo delegado Márcio Mendonça, da Delegacia de Roubos e Furtos de Automóveis (Derfa), de ter intermediado a venda de um fuzil AK-74 a Nem. Pode haver contradição mais cruel do que o ex-presidente de uma entidade intitulada União Pró-Melhoramentos e benemérito da campanha do desarmamento ser pilhado armando bandidos, para que estes possam executar cidadãos honestos? Trata-se de uma ironia que transcende a pura amargura, mas, infelizmente, não passa de um respingo de lama.
O vídeo de 18 minutos em mãos da polícia fluminense é mais uma evidência dos vasos de comunicação existentes entre crime e política, grupos armados que violam a lei e figurões republicanos que se engalfinham pelo poder no Estado. Nessa comunicação do "me engana que eu gosto" se utiliza o eufemismo politicamente correto como retórica oficial. Não sei se o distinto leitor já reparou, mas nos noticiários de televisão não se usa mais a palavra favela, com a qual antes se definiam conjuntos de habitação precária em que a miséria cerca nossos centros urbanos. O nome foi dado pelos sobreviventes da Guerra de Canudos que foram morar nos morros do Rio e tem origem na forma como é denominada uma planta do semiárido de origem. Hoje são "comunidades".
A prática de tentar suavizar uma brutalidade pela retórica caridosa se tem tornado corriqueira nesta era da comunicação de massas, em que a linguagem se sobrepõe ao ato e a versão prevalece sobre o fato. Chamar um negro de "afrodescendente" não elimina o preconceito racial, mas o mascara de forma conveniente para uma sociedade de faz de conta, na qual a incapacidade de acabar com conflitos usa a hipocrisia para mascará-los. Mesmo apanhado em flagrante delito, William da Rocinha foi qualificado como "líder comunitário". O eufemismo benevolente torna-o um benfeitor por vocação, ao mesmo tempo que fornece o álibi perfeito a todos os políticos que se aproveitaram de seu prestígio na "comunidade", desde sempre desamparada e desprezada pelo Estado e seus agentes, para angariar votos em campanha e boas imagens populistas para os shows de marketing político ao longo das administrações. Trata-se de uma prática antiga e disseminada. O ex-governador do Rio Leonel Brizola praticamente avalizou a tomada do território das "comunidades carentes" instaladas na periferia da capital fluminense ao declarar que sua polícia não subiria o morro para não constranger o morador dos bairros pobres. O poder real na Rocinha, representado (até a prisão) pelo traficante Nem, e o poder político da República - presidentes e governador no exercício de seus mandatos, o secretário de Segurança que ignora o óbvio e a vereadora tucana que o sustenta com nosso dinheirinho escasso - se curvaram ante o "representante do povo".
Mais irônico é que no dia em que foi noticiada a prisão de William da Rocinha também foi divulgada a de Marcos Valério Fernandes de Souza, o lobista acusado de operar uma prática lesiva ao interesse público inadequadamente apelidada de "mensalão". Como Al Capone, o gângster mais poderoso e violento da Chicago da Lei Seca, caiu nas malhas do fisco, o "careca" (agora com fios incipientes de cabelo no crânio), como ficou conhecido, na definição do delator da fraude, o ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), foi preso sob acusação de ter falsificado matrículas de imóveis em São Desidério (BA) para fraudar processos de execução de dívidas com instituições financeiras e empresas. Com a Operação Terra do Nunca, o Ministério Público e a Polícia Civil da Bahia, cujo governador, Jaques Wagner, é do PT, desmoralizaram por tabela todas as tentativas dos principais réus do processo - entre os quais José Dirceu, ex-chefe da Casa Civil no governo Lula - de negar a existência de um eventual esquema de compra de apoio de parlamentares de legendas menores da base governista em votações no Congresso de interesse do governo.
Na "terra do nunca" o crime sai bem na fita, já que o braço da lei só logra alcançar "bagrinhos" sem força, como William da Rocinha e Marcos Valério.
(*) Jornalista e escritor, é editorialista do 'Jornal da Tarde'
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