Sarney estatiza a própria memória
Ricardo Noblat (*)
Sei que a pergunta parecerá idiota. Ou melhor: reconheço que é uma pergunta idiota. Mesmo assim não renuncio a fazê-la.
Ninguém da família Sarney - nem o patriarca, nem a filha governadora - se envergonha de ter dado à luz a uma lei que estatizou no Maranhão a Fundação José Sarney?
É na tal fundação, mantida em grande parte com dinheiro público, que Sarney acumula documentos e objetos de sua época como presidente da República. O mausoléu dele está lá, prontinho.
A fundação funciona num convento antiquíssimo de São Luís. A ocupação do convento é uma história repleta de suspeitas de irregularidades.
Roseana, a governadora, decidiu que caberia ao Estado arcar com todos os gastos da fundação. O pai deve ter agradecido em lágrimas.
A proposta de lei chegou numa quinta-feira à Assembléia Legislativa do Maranhão. Na segunda-feira seguinte foi publicada no Diário Oficial. Dali a dois dias havia se transformado em lei.
Não passou pela cabeça dos Sarney que eles legislaram em causa própria? Não passou que isso pode não ser ilegal, mas é desavergonhado, cínico?
Onde fica a fronteira entre o público e o privado? Ou eles já não sabem mais onde fica? Algum dia souberam?
Sarney começou sua carreira política em 1954 como suplente de deputado federal. Se estiver no batente daqui a três anos completará 60 anos à sombra do poder. Jamais esteve à margem.
É o parlamentar mais antigo em atividade no Congresso. Exerce pela quarta vez a presidência do Senado.
Não me espantaria se o berço que acolheu Roseana recém-nascida exibisse uma daquelas plaquinhas de metal com letras e números que costumam identificar bens públicos.
Se nada mais lhe envergonha a essa altura da vida, Sarney poderia pelo menos poupar a filha de atos que desde já a envergonham.
Não envergonham?
O que é isso?
Pois deveriam.
(*) Jornalista é articulista do jornal O Globo e responsável pelo Blog do Noblat
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