73 mudanças na Constituição em 28 anos — e mais de duas mil propostas para alterá-la — mostram que não sabemos, ainda, que país queremos
Ricardo Setti (*)
Amigos do blog, discute-se muito quais são os principais problemas do país. E aí aparece de tudo — desde a morosidade da Justiça à má distribuição de renda, dos altos índices de criminalidade à má qualidade da educação pública.
Não tem estado na agenda nacional, porém — pelo menos de maneira expressa –, um item fundamental: que país queremos que o Brasil seja?
Vejam bem, a próxima reforma constitucional (e não faltam, como veremos, emendas em andamento), quando for aprovada, será — segurem-se — a 74ª alteração a uma Constituição aprovada há apenas 23 anos. São 67 emendas constitucionais e 6 emendas chamadas “de revisão“, mas recebem esse apelido não por terem sofrido uma revisão ortográfica, e sim por haverem sido aprovadas cinco anos depois da entrada em vigor da Carta, que previa essa revisão automática.
A cada 3 meses e 24 dias, muda-se a Constituição
Feitas as contas, é uma coisa espantosa, absurda, sem pé nem cabeça: mudamos a nossa Carta Magna,, nossa lei fundamental, a cada 3 meses e 24 dias!
Com todo o respeito, nem regulamento de campeonato de futebol no Brasil muda tanto, e há muito tempo.
Só para comparar: a Constituição dos Estados Unidos foi emendada 27 vezes desde 1787 – uma alteração a cada 8,3 anos. A mais recente ocorreu há 19 anos. Na nossa Constituição, em dezembro do ano passado.
A Constituição da Espanha, desde 1978 regendo a vida de um país complexo, composto de várias nacionalidades, culturas e idiomas, e egresso de 36 anos de uma ditadura feroz instalada após uma guerra civil que causou 1 milhão de mortos, tinha sofrido até hoje apenas uma pontual alteração em 1992, para incorporar a elegebilidade de estrangeiros nas eleições municipais, em consequência do Tratado de Maastricht, um dos textos básicos da União Europeia.
Constituição espanhola: só uma alteração, em 1992, para incorporar um ponto do Tratado da União Européia; a outra entra em vigor apenas em 2020
Nossa Carta, na contramão da História
A segunda alteração se deu em setembro, como forma de conter a desconfiança na capacidade de o país honrar suas dívidas diante da maré da crise financeira, e estabelece que uma lei fixará limite para o déficit público.
A Constituição é tão levada a sério que houve um clamor nacional pelo fato de a emenda haver sido aprovada apenas pelo Congresso, embora por esmagadora maioria de 90% de votos devido ao acordo entre os dois grandes partidos, o Socialista, do governo, e o Partido Popular (PP), conservador, de oposição, e não ser submetida a um referendo. E isso para uma emenda que entrará em vigor em… 2020.
No Brasil, aprovada na contramão da História, a Constituição de 1988 atribuiu ao Estado um papel e um peso na vida do país que a experiência doméstica e internacional já tinham mostrado não ter mais sentido. O Muro de Berlim cairia um ano depois.
A “Constituição Cidadã” do dr. Ulysses Guimarães também não se sentou para fazer contas, distribuindo direitos para todo lado sem se preocupar com quem pagaria a fatura.
Ulysses Guimarães e a Constituição de 1988, a "Constituição cidadã": ficou a pergunta - quem pagaria as contas de tantos direitos?
País “ingovernável”
Na fase final de discussões da Constituinte, o então presidente da República, José Sarney, que conviveria pouco mais de um ano de seu mandato (1985-1990) com a nova Carta, advertiu que o país se tornaria “ingovernável” com ela do jeito que estava sendo estruturada.
No governo Fernando Collor (1990-1992), o Palácio do Planalto realizou um levantamento em seu texto: ele continha cinco vezes mais a palavra “direito” do que a palavra “dever”.
Não é por acaso, pois, que só na Câmara dos Deputados tenham sido propostas desde sua entrada em vigor nada menos do que 2.702 emendas. Isto mesmo, amigos: duas mil, setecentas e duas emendas! Dessas, 225 aportaram na Câmara após aprovadas pelo Senado, e 2.477 se originaram do Executivo ou dos próprios deputados.
Delirante furor mudancista
Uma série de medidas propostas, sobretudo pelos governos que sucederam Sarney, se explica, é claro, pelo fato de que alterações, tendo em vista o timing ideológico da Constituição, eram, afinal de contas, necessárias. Mas o delirante furor mudancista corporificado em 2.702 emendas certamente reflete outro fenômeno, a respeito do qual pouco se fala: ainda não há, na sociedade brasileira, um consenso sobre como devem ser as instituições.
É evidente que a Constituição não forma o país, mas o Estado e o conjunto de leis que regerão os cidadãos. Não se pode negar, no entanto, que ela costuma ser o documento que exprime um consenso social sobre os rumos que o pais deve ter, que caminhos seguir, que contornos adquirir, que futuro ambicionar.
Nossa falta de convergência sobre os principais pilares sobre os quais deve se erguer o Estado, com sua brutal influência sobre a sociedade, é muito diferente do que ocorre nos Estados Unidos — para ficar de novo no exemplo da mais antiga República do mundo moderno e não falar de países civilizados multisseculares, como o Reino Unido.
Mesmo nas tumultuadas eleições americanas de 2000, nas quais o presidente George W. Bush, republicano, venceu o democrata Al Gore graças à anulação de cruciais votos democratas na Flórida, o respeito ao sistema, alvo do absoluto consenso geral, permaneceu incólume.
O preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos: em 224 anos, só 27 emendas. Nós, em 23 anos, já temos 73!
O resultado ficou constrangedoramente pendente durante mais de um mês – mas, quando a Suprema Corte decidiu o caso, o veredito foi engolido por todos e não passou pela cabeça de ninguém, a começar pelos democratas, contestar a legitimidade de Bush.
No Brasil, graças a Deus não mais derrubamos presidentes na marra. Mas faz-se greve contra decisão judicial, existem leis que não pegam, o flerte com o parlamentarismo continua – mesmo tendo sido o sistema maciçamente rejeitado no plebiscito de 1993 –, e uma corrente social forte como o MST debocha às claras da nossa “democracia burguesa”.
Nos EUA, o projeto de República dos fundadores foi desde sempre aceito e assimilado por todos — inclusive os dezenas de milhões de imigrantes que lá aportaram em busca do “sonho americano” – e quase santificado. Aqui, progredimos, mas estamos longe disso
(*) Jornalista é articulista da Revista Veja
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