Dom Odilo P. Scherer (*) para O Estado de S.Paulo
Notícias chocantes sobre atos violentos se multiplicaram nas últimas semanas: é filho que degola os pais, jovem que chega ao bar, ferindo e matando porque alguém mexeu com a namorada, mulher que mata a filhinha do amante, motorista que lança o carro sobre ciclistas em passeata pela rua; são adolescentes que matam a coleguinha rival no primeiro amor... E os casos poderiam continuar, é só seguir o noticiário de cada dia.
Não se trata da violência da guerra, de grupos de extermínio ou do crime organizado: é violência comum, da vida privada, por motivos fúteis. E nem é por que há muita arma de fogo na mão do povo: um veículo, uma faca de cozinha e até um cadarço podem virar armas letais, quando a vontade é assassina!
A ação das autoridades de segurança e os rigores da lei não assustam nem impedem os crimes. Muita tensão nas relações sociais e motivos banais levam a perder a cabeça, a fazer justiça com as próprias mãos e a cometer as maiores violências contra o próximo. E corremos todos o risco de nos habituarmos com notícias e imagens brutais, com a mesma indiferença sonolenta com que assistimos a cenas de um filme. A realidade se funde com a ficção e mal caímos na conta de que, nesses casos, a morte e a dor são reais. Como explicar tanta violência no convívio social?
Deixemos aos estudiosos do comportamento humano a análise do fenômeno. Desejo refletir sobre algo que me parece estar na base desses fenômenos.
Os fatos denotam uma radical desconsideração pela dignidade da pessoa humana, pelos seus mais elementares direitos e pelos valores éticos que devem orientar as decisões na vida. O violento, ferindo ou matando uma pessoa, também legitima a violência, de modo implícito, também contra si próprio, pois ela pode voltar-se contra o autor dessa ação. E, se isso não lhe importa, significa que ele não tem consideração pela sua dignidade pessoal nem amor pela própria vida. Ou tem a presunção de levar sempre a melhor, e aí estaríamos diante do estágio mais primitivo do desenvolvimento humano, em plena lei da selva.
A violência é dos brutos e denota uma lamentável inconsciência diante da dignidade da pessoa, dos seus direitos fundamentais. É ausência de sensibilidade, ou desprezo pelos valores básicos da conduta.
Alguém logo apontará para a urgência de um rigor maior da lei e para a ação mais eficaz das autoridades que a representam e aplicam.
Todos esperam, certamente, que os responsáveis cumpram o seu dever e as leis sejam mais conhecidas e respeitadas, porém não é por falta de leis que os crimes acontecem. E, se a grande garantia para a inibição do crime fosse a autoridade que representa a lei, estaríamos muito mal e não haveria policiais em número suficiente para vigiar todos os potenciais criminosos. A ausência da autoridade encarregada da aplicação lei não legitima o crime.
O alastrar-se da violência está sinalizando para uma desorientação cultural, em que há pouca adesão a referenciais éticos compartilhados, ou mesmo a falta deles. Valores altamente apreciáveis, como a vida humana, a dignidade da pessoa, o bem comum, a justiça, a liberdade e a honestidade caem por terra quando outros "valores" lhes são sobrepostos, como a vantagem individual a qualquer custo, a satisfação das paixões cegas, como o ódio, a avareza, a luxúria, a vaidade egocêntrica...
Princípios éticos tão elementares quanto essenciais, como "não faças aos outros o que não queres que te façam", ou os da inviolabilidade da vida humana, do respeito pela pessoa, do senso da justiça e da responsabilidade compartilhada perdem cada vez mais seu espaço para algo que se poderia qualificar como "pragmatismo individualista sem princípios".
Se cada um elabora os referenciais para seu agir de acordo com os impulsos das paixões, as conveniências ou ganhos do momento, perdemos os referenciais comuns da conduta no convívio social.
Chegamos a isso por muitos fatores, mas alguns me parecem importantes. A conduta reta, ou o seu contrário, depende da educação; virtude e vício têm mestres e currículos próprios. Valores e princípios são ensinados e apreendidos; e a inteligência humana é capaz de reconhecê-los, de distinguir entre o que é bom e o que é mau. Por sua vez, a consciência pessoal e a vontade, quando bem esclarecidas e motivadas, inclinam-se para o bem e rejeitam o mal.
A lei exterior, por si, é constritiva, porque vem acompanhada pela ameaça, não muito eficaz, do castigo e da pena. Eficácia maior da lei é garantida pela adesão interna e livre ao valor protegido por ela. É a lei moral inscrita no coração, da qual fala o filósofo Immanuel Kant. E já falava a Bíblia (cf Sl 37,31; Jr 31,33).
Creio que aqui há muito para se fazer. Sabemos que, atualmente, os tradicionais agentes de educação, como a família, a escola e as organizações religiosas, estão conseguindo fazer isso de maneira muito limitada e seu papel na educação é até dificultado, quando se dedicam a fazê-lo.
Por outro lado, há uma progressiva desconstrução dos referenciais éticos da conduta pessoal e coletiva. E contribuem para a erosão dos valores e para a desorientação da ética no convívio social a exaltação dos "heróis bandidos" e do "valentão mau caráter"; a espetacularização da violência; o mau exemplo que vem do alto; a impunidade, que leva a crer que o crime compensa; e também a exploração econômica da corrupção dos costumes e a capitulação do poder constituído diante do crime organizado, que ganha muito dinheiro com o comércio letal da droga.
O alastrar-se da violência gratuita é uma consequência natural.
(*) Cardeal-Arcebispo de São Paulo
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