sexta-feira, 25 de março de 2011

O meu pirão social

Bellini Tavares de Lima Neto (*)

Dias desses um jornal de televisão mostrava uma cena que praticamente já deixou de ser novidade: um congestionamento de trânsito e os assaltos aos veículos ali parados. Isso já se tornou tão comum que se chega até a pensar em porque um episódio desses ainda é alvo de um noticiário. Mas, talvez por questão de hábito, a televisão resolveu veicular o fato. Lá estava um repórter entrevistando os motoristas que protagonizavam a cena e, certamente, o cinegrafista que, por sinal, nunca aparece nas reportagens. Triste sina a do cinegrafista a quem é reservado o completo anonimato. Pelo jeito, o assalto tinha acontecido havia pouco e as pessoas ainda estavam com aquelas caras de susto, mesmo se tratando de fato já corriqueiro. O repórter se dirigiu a um dos motoristas presos no engarrafamento e fez aquelas perguntinhas de praxe. O homem descreveu rapidamente a ação dos ladrões e depois arrematou com um comentário interessante: “pois é, a gente ficou assustado e pensando que poderia ser o próximo, mas, graças a Deus, não aconteceu nada”. Segundo a legenda que identifica o entrevistado, o sujeito era um religioso. Confesso que não consegui entender muito bem a lógica da cena. Afinal, se o sujeito do carro de trás escapou do susto graças a Deus, o que poderia dizer o da frente, o tal que contribuiu para o pão nosso de cada dia dos ladrões?

Lembro-me de que, há muitos anos, nos meus tempos de exame vestibular, houve um tema de redação que causou uma discussão danada no meio estudantil por conta do seu inusitado. O tema era “Nenhum homem é uma ilha”, frase atribuída a um poeta inglês do século XVI. Não é preciso pensar muito para imaginar a confusão que o tema causou, especialmente naqueles tempos em que todo mundo se esmerava em enxergar profundidade até mesmo onde não havia nenhuma. É claro que a proposta era a de se discutir impropriedade do isolamento do indivíduo e a quase impossibilidade de sobrevivência em tal circunstância. E quem teria a petulância de contrariar Aristóteles e sua afirmativa de que o homem é um animal social? Pois passadas algumas décadas (digo que são algumas para diminuir um pouco o impacto) me deparo com a sensação de que o grego deve ter dito uma tremenda batatada. Pois se até em relação à divindade, cada um parece ter a sua, a ponto de o sortudo que não foi visitado pelos ladrões no congestionamento dizer ao repórter que graças a Deus não tinham mexido com ele. O Deus do azarado da frente ou estava de folga ou tinha se cansado do engarrafamento e resolveu ir embora a pé. Largou o infeliz à sua própria sorte, para sorte dos felizes ladrões que ganharam o dia ou parte dele.

O que parece que temos, então, é uma disputa: de um lado, pesando seja lá o que for, o principio grego de que o homem é um animal social e suas variações, com a de que nenhum homem é uma ilha e do outro lado, também com seu peso que não sei qual é, a consagrada máxima de que “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Quem ganha? Nenhum dos dois. É que o bicho-homem conseguiu misturar as duas coisas atendendo às suas conveniências. Em alguns pontos, vale a regra do pirão, a filosofia do “ninguém tasca, eu vi primeiro” ou, então, a fórmula mágica do “o que é meu, é meu, o que é dos outros, nós vamos discutir”. E, com a mesma tranqüilidade, facilidade e nenhum constrangimento, pode entrar em cena a idéia de que, em sendo um animal social, o tal começa a estabelecer regras. Isso tudo me bateu de repente com a divulgação recente de um filme que trata da história de uma garota de programa que, para se diferenciar da concorrência, passou a se utilizar da “internet” para fazer sua propaganda e acabou se tornando autora de dois ou três livros contando suas peripécias. Por fim, a distinta acabou se aposentando e, segundo consta, acabou se casando com um de seus clientes. Não se pode dizer que seja uma história perfeitamente comum, mas, provavelmente, não deve ter sido a primeira vez, na história da humanidade, que isso aconteceu. Mas, o que chama a atenção é a reação da pessoas diante do fato de que alguém se dispôs a conviver com a moça, casar com ela. Apesar da postura politicamente correta que tem tomado conta da sociedade, a quase regra geral é que a reação seja sempre negativa ou, no mínimo, de incredulidade para, a seguir, ser coroada com aquele desprezo pelo sujeito que se presta a isso. Não é assim? Ah, eu sou preconceituoso? Está bem. Então, faça um teste. Imagine-se no lugar do sujeito ou na posição de um pai cujo filho tome uma decisão dessas. Complicado, não?

O mundo anda cheio de desafios à nossa ilha. As garotas de programa, os homossexuais, até mesmo as pessoas de diferentes etnias. Tudo vai muito bem enquanto estiver valendo o meu pirão primeiro. Mas, já vou avisando, não se achegue porque, aí, eu viro um animal social.

(*) Advogado , morador em S. Bernardo do Campo (SPO).
Escreve para o site O Dia Nosso De Cada Dia - http: blcon.wordpress.com


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