domingo, 20 de março de 2011

Alinhando Conceitos

Bellini Tavares de Lima Neto (*)

O filme Tropa de Elite saiu de cartaz há mais de um mês. Ou já serão dois? Talvez até três. Mas, isso é irrelevante. O que importa é que ele foi uma verdadeira comoção, um acontecimento. Eu não fui ver no cinema. São esses mistérios de quem, agora, tem mais tempo que antes. Excesso de tempo, escassez de feitos, obras, acontecidos. Burro apertado é que anda, dizia meu avô. Passado esse tempo todo, a poeira baixou, vieram outras atrações e o filme saiu de cena. Literalmente. Agora, só alugando em uma locadora e se conformado em ver na tela pequena, doméstica, da televisão.

Apesar de não ter assistido, não havia como não saber do que se trata, tamanha a repercussão que o filme alcançou e o impacto que causou. Ouvi comentários sobre o grau de violência e até houve quem se recusasse a vê-lo exatamente por conta dessa tão alardeada violência. De fato, a considerar o primeiro “Tropa de Elite”, não se poderia esperar nada muito tranqüilo ou ameno. Afinal, o tema não comporta outra coisa se não muito tiro, muito sangue, muita morte, muita violência. E o que mais pode ser produzido em ambiente tão hostil, tão fora dos padrões de justiça em seu sentido mais amplo, como o dos morros habitados por criaturas que fazem do crime o seu cotidiano? A sensação é a mesma da que ocorre em países que vivem em guerra, interna ou externa, por gerações e gerações. Pessoas nascem, crescem, vivem e morrem conhecendo apenas a realidade da guerra. Logo, a guerra é a realidade. O resto é fantasia.

Finalmente, meses depois do lançamento, chegou a nossa vez, minha e da parceira, de enfrentar o filme. E lá ficamos nós, telinha pequena, sala de casa, na nossa sessão doméstica, sem conseguir dar conta do tempo decorrido. Uma hora e meia, duas horas? Não sei. Quando começaram a subir os letreiros, ficamos, a parceira e eu, por quase um minuto em silêncio absoluto, como que anestesiados, entorpecidos. O primeiro comentário, se é que se pode chamar de “comentário” a uma observação ainda feita sob o impacto das cenas, foi da parceira: “Como é que permitiram que saísse um filme assim?” Convém esclarecer, sobretudo aos mais jovens, que isso é o que se poderia chamar de “efeito ditadura”. Trata-se de uma reação própria de quem, como nós dois, viveu os tempos em que a censura imperava e quase nada era divulgado. Nos acostumamos com a idéia de que certas coisas simplesmente não saiam, não era permitido. A minha resposta, mais ou menos no mesmo clima, foi óbvia: “Não há mais censura, não é” Pois é, não há mais censura, Levantamos do sofá da sala com um cuidado esquisito, como se não quiséssemos chamar a atenção de ninguém, algo assim como sair pé ante pé. Aos poucos fomos recuperando o prumo. Eu perguntei a ela a respeito da violência. Ela não soube me dizer o que tinha achado e eu notei que também eu não sabia o que dizer da violência do filme. Estranhamente, a violência, as cenas de sangue, morte, haviam passado quase despercebidas. Como é possível que um filme que aborda esse tema e de maneira explícita, não tenha chamado a nossa atenção para esse ponto? Pois é. Não chamou.

Aos poucos fomos saindo daquela espécie de letargia e nos dando conta de que a verdadeira violência, o lado escabroso, apavorante, não estava nos tiros, no sangue, nas torturas, nas mortes. Estava, sim, na trama mais do que macabra que se estabelece entre as autoridades, tanto policiais como administrativas, como políticas. O aspecto sinistro de tudo e tão sinistro a ponto de superar as cenas de violência, reside nas relações espúrias entre os dois lados da mesma marginalidade: o explícito e o implícito. Para quem ainda não assistiu, o filme é uma denuncia bombástica, contundente, arrasadora acerca do conluio, da associação deletéria que se estabeleceu entre o crime dito organizado e as autoridades policiais, administrativas e políticas que ocupam a governança do país. Traficantes de drogas aliados a patentes policiais, a secretários de governo, a membros do parlamento conduzem o estado tal como se estivessem gerenciando uma empresa com fins lícitos. Não há o menor resquício de constrangimento ou a mais remota desconfiança acerca do caráter das operações. E, muito menos ainda, limites para que os fins sejam alcançados. É o ápice da convivência em estado de perfeição.

Mas, afinal, onde está a novidade disso tudo? Afinal, alguém ignora esse estado de coisas que já vem se prolongando há décadas? Isso é assim há décadas e continua a ser sem qualquer contestação. Pois é, talvez exatamente aí que esteja o ponto mais sombrio, mais assustador, mais aterrorizante: como isso se estabeleceu na sociedade e em bases mais do que sólidas. É como dar de frente com uma verdade que já se conhece tanto a ponto de se ter criado insensibilidade a ela. E, de repente, surge um filme como esse, em segunda edição já que o primeiro já continha as mesmas denuncias. Chama a atenção de parte da população por um curto espaço de tempo e, rapidamente, cai outra vez no esquecimento. Não há mais censura, é verdade. E também não há reação alguma, a não ser aquela imediata, logo que o filme entrou em cartaz e permaneceu nos cinemas. Terminada sua temporada, foi para as prateleiras das locadoras, para as cinematecas, parou de causar impacto, questionamentos ou reflexão.

As denuncias são de uma contundência impressionante, sobretudo porque o autor não fez questão alguma de ressalvar, mesmo hipocritamente que “qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência”. Seria, então, minimamente esperado que as entidades atingidas pelas acusações contestassem tudo e viesse a público para que fossem apuradas as responsabilidades pela falsidade daquilo. Em lugar disso, o que se viu foi a absoluta indiferença por parte de quem é claramente citado como agente de corrupção despudorada.

A contundência das acusações, a apenas momentânea reação da sociedade e a completa indiferença dos acusados, isso foi o que realmente chamou a atenção e nos deixou, a mim e à parceira, quase a nocaute. Essa foi a violência que nos deixou meio tontos. Dizia o antigo ditado que “os cães ladram e a caravana passa”. Aqui, uns poucos cães rosnam, a matilha se acoita enquanto a caravana, ah! essa já se apossou da rua com a justificada sensação de que tudo será eterno. Alguém quer violência maior?

(*) Advogado , morador em S. Bernardo do Campo (SPO).
Escreve para o site O Dia Nosso De Cada Dia - http: blcon.wordpress.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário