Silvano Raia (*) para O Estado de S.Paulo
Nos últimos anos tenho dirigido minha atividade profissional para iniciativas gerais relacionadas com o ensino, com a estruturação de novas equipes e com a valorização de princípios éticos no exercício da prática médica. Acredito que temas específicos e pontuais devam merecer a atenção das gerações mais jovens, como a nossa fez até há pouco.
O progresso tecnológico e a competição exagerada que caracterizam o momento atual podem ser relacionados com a falta de cuidado com que alguns se conduzem diante dos princípios da Deontologia Médica. Essa disciplina trata do relacionamento dos médicos entre si e do seu relacionamento com a sociedade em geral.
Nesse sentido, considero falta imperdoável que os mais jovens neguem ou omitam a contribuição dos que os precederam ou a dos seus contemporâneos que conseguiram com sucesso atingir os mesmos objetivos. Mostra que ainda não conseguiram chegar e provavelmente nunca chegarão às dimensões daqueles que tentam igualar.
Dias atrás, lendo reportagem de uma revista de grande circulação sobre transplantes de fígado no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), fui tomado por sentimentos de desilusão e tristeza, que me levaram a escrever estas linhas, para reparar injustiças nela constantes.
A reportagem refere as casuísticas de 2002 até 2010. Não cita, porém, que cerca de 500 desses transplantes foram realizados exclusivamente pela Unidade de Fígado, chefiada por nós e com a importante participação dos professores Sergio Mies e Paulo Massarollo.
Para melhor compreensão vale citar alguns fatos.
No início de 2001, logo depois de minha aposentadoria na Universidade de São Paulo (USP), aceitei o convite do então presidente daquele hospital, Reynaldo Brandt, para iniciar um programa regular de transplantes de fígado no HIAE. Até então o procedimento era realizado em pequeno número e de forma esporádica. O convite foi feito em vista da grande experiência em cirurgia e em transplante de fígado acumulada, nos últimos 30 anos, pela Unidade de Fígado do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Entre outras contribuições, em 1985 realizamos o primeiro transplante de fígado com doador cadáver bem-sucedido no Brasil e na América Latina. O tema mereceu reportagem de seis páginas na mesma revista que agora não o cita ao comentar o número de transplantes realizados no HIAE em 2010. Cita apenas o autor americano que realizou o primeiro transplante de cadáver nos Estados Unidos, inaugurando esse novo procedimento cirúrgico. Saliente-se que de 2001 até 2006 a Unidade de Fígado foi a única responsável pelo programa do Hospital Israelita Albert Einstein, realizando ali cerca de 500 transplantes. Em 2007 trabalhou concomitantemente com a equipe atual, para então interromper aí suas atividades.
Estimulado pela frustração causada por todos esses fatos, fui pesquisar e verifiquei que vários centros realizam anualmente um número superior ao referido na reportagem, que atribui os 198 casos transplantados em 2010 no HIAE como sendo a maior casuística do mundo naquele ano. Entre eles destacam-se o King"s College Hospital, de Londres, com mais de 200 transplantes/ano (www.kch.nhs.uk), e o Asan Medical Center, de Seul, com cerca de 300 transplantes no mesmo período (http://eng.amc.seoul.kr/).
Considerando todos esses dados em conjunto, percebe-se que o Brasil, mesmo não sendo o primeiro em quantidade, está seguramente entre os primeiros em criatividade, desenvolvendo técnicas novas, que hoje são empregadas nos centros mais avançados do mundo em beneficio de milhares de pacientes que necessitam de transplante de fígado e não dispõem de doadores falecidos.
Além dessas falhas, a reportagem apresenta como inédito o transplante realizado numa paciente portadora da anomalia situs inversus. Esse transplante vem sendo realizado por vários outros grupos, com técnicas publicadas há anos em revistas médicas de grande circulação. No Brasil já foi realizado com sucesso no ano passado pela equipe da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto chefiada pelo professor Orlando de Castro e Silva Junior.
A reportagem surpreende também ao relacionar o importante aumento na captação de órgãos no Estado de São Paulo apenas à contratação pelo HIAE de quatro enfermeiros especificamente designados para essa função. Na realidade, o aumento decorreu de vários fatores, resultado do esforço exemplar de muitos anos de todas as Organizações de Procura de Órgãos (Hospital das Clínicas, Santa Casa, Escola Paulista de Medicina, Dante Pazzanese, além das do interior), coordenadas pela Central de Transplantes da Secretaria da Saúde.
Estou seguro de que a direção do Hospital Israelita Albert Einstein, que muito respeitamos e da qual recebemos sempre demonstrações de apreço e consideração, desconhecia os erros e as omissões aqui apontados. As reconhecidas dimensões de excelência atingidas por esse hospital nos últimos anos justificam essa interpretação. Também merecem elogios os componentes da equipe atual do HIAE pelo significativo número de transplantes que realizaram em 2010. Entretanto, sabemos que, muitas vezes, a divulgação ufanista de resultados dificulta o reconhecimento legítimo que possam merecer.
Como professor mais antigo da especialidade, não me posso omitir diante da injustiça cometida em relação a vários membros da nossa comunidade transplantadora, à estrutura de captação do Estado de São Paulo e, de certo modo, a todos nós que passamos a vida ensinando respeito à verdade e aos mestres que nos precederam.
(*) Professor Emérito da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo)
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