Numa hipotética, embora próxima à realidade, reunião para deliberar sobre a Copa do Mundo de 2014, decobrimos que no condomínio chamado futebol brasileiro tudo é possível
Metáforas são livres para sonhar com realidades e criar ambientes imaginados. E somente por isso é possível que conheçamos, ou desenhemos, um dos possíveis encontros deliberativos relativos à Copa do Mundo de 2014. Com a devida permissão poética, aí vai: foi em certa sala suspeita que alguns elementos, também suspeitos, se reuniram para decidir assuntos de seus interesses. Era um lugar algo estranho, com certo ar de antiguidade deteriorada. Não pareciam estar muito à vontade. Estamos falando de um condomínio, de certo porte, que agregava alguns figurões da sociedade local. Por uma dessas ironias do destino, ou manias de mandar, alguns de seus representantes se investiram do direito de responder e decidir por todos os outros. Quase como um golpe.
Deliberou-se ali sobre a taxa de condomínio e algumas outras formalidades, que passaram a ser exigidas de todos para a boa convivência dos vizinhos. Essas poucas pessoas que ocupavam os sofás pouco cuidados aparentavam estar um pouco alteradas. Diria até que não tinham condições plenas de admissão de suas posições. Um, de alva cabeleira, que mais lembrava um decadente cantor de fundo de quintal, comandava todos os outros, que mais pareciam marionetes ou então lhes faltava muito pouco para tanto. Em voz alta bradava que uma tomada de posição deveria ser assumida. Que absurdo cobrar de todos os moradores do prédio, por exemplo, a manutenção dos elevadores!
Uma garçonete em trajes sumários adentrou o recinto com uma bandeja e provocou um mal-estar no funcionário que guardava a porta – armado, diga-se de passagem. Os participantes da mesa reagiram com absoluta naturalidade, como se aquela visão fosse comum. Na verdade, a maioria estava louca para que aquele encontro se encerrasse logo e assim pudessem se dirigir a um local mais permissivo, digamos assim, que já se encontrava devidamente agendado como uma forma de prêmio pela participação. Só o fato de se recordarem do depois era motivo para extrair um sorriso incontrolável da maioria.
Outro, que se alojava do lado oposto, enquanto saboreava arrogantemente um charuto cubano que comprara nas docas, resolveu colocar mais fogo no gargalo. Levantando insistentemente a mão por mais de dez minutos, conseguiu chamar a atenção do chefão, que, irritado, anuiu à sua palavra. Levantou-se solenemente, como se um lorde fosse, e começou a desfilar suas impressões: “Nós, gente da melhor espécie, temos de imediatamente definir nossas posições. Devemos exigir que nenhum tipo de taxação incida sobre nossas cabeças. Que todos os motoristas particulares nos recebam de joelhos dobrados e cabeça baixa. Que empregados, ah, jamais os tenhamos por perto. Que deixemos de pagar os impostos do imóvel. Que o IPTU e outras extorsões deverão, a partir de hoje, ser pagos pelos funcionários, que trabalharão sem direito a salário e a qualquer tipo de privilégio; muito menos pagamento por horas extras”.
Foi uma loucura. Os pequenos – e pretensos tiranos – comensais se levantaram para um eufórico brinde com uma aguardente envelhecida. O orgulho estampara-se em seus rostos. Sentiam-se o máximo, os únicos, os invencíveis. O que diriam suas pobres esposas, amantes ou suas próximas companhias? Nada mais que isso. Nem sabiam com quem tratavam suas vidas. Ou, quem sabe, conheciam muito bem quem as saciavam de colares, moedas e vergonha. Chamaram a secretária para colocar em ata todos esses absurdos. Um, o pior, escapou no ocaso do evento. Era definitiva a resolução de que nada nem ninguém poderia, a partir daquele momento, ingressar naquele prédio. Nem eles!
Embriagados pelo poder investido, não se deram conta de que era a própria derrocada. Nenhum deles tinha outra fonte de renda nem onde encostar o que possuía. Ficaram ao relento. Os outros moradores e os que habitavam ao lado ficaram estupefatos e não se renderam. Era muita ignorância ou um tremendo blefe de amadores. Pagaram para ver o que é que daria. Era questão de tempo. Todos acabaram retornando para suas próprias casas com o rabo no meio das pernas, mas sempre pensando em novas besteiras a serem feitas. Era só questão de tempo. No condomínio chamado futebol brasileiro tudo é possível.
Em tempo: arenas para a Copa do Mundo, poderes investidos em si próprios, renúncias fiscais da União, implosão do Clube dos 13, negociações paralelas; tudo isso foi recentemente pauta de alguns acordos nascidos desses furtivos encontros.
(*) Médico, comentarista esportivo, foi jogador de futebol do Corinthians, entre outros clubes, e da seleção brasileira.
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