Clóvis Rossi (*)
É um equívoco achar que as ditaduras são mais aptas que democracias para evitar distúrbios
A violência antinorte-americana dos últimos dias, no mundo árabe/muçulmano, está levando a uma sensação disseminada -e não apenas nos EUA- de que a chamada Primavera Árabe desandou em flores pouco agradáveis, hostis mesmo.
Os exemplos abundam, mas, por problemas de espaço, cito só um, talvez a melhor síntese, feita por
Bobby Ghosh, na revista "Time": "A Primavera Árabe substituiu a áspera ordem de ditadores odiados pelo florescimento de democracias neófitas. Mas esses governos -com mandatos fracos, lealdades em constante mutação e forças de segurança débeis- transformaram a região em um lugar mais caótico e instável, mais suscetível do que nunca a provocadores vis que fomentam revoltas violentas, usualmente em nome da fé".
A descrição pode até ser apta, mas embute o risco de que se salte para a conclusão de que ditaduras são inerentemente menos caóticas que a democracia e mais capazes de controlar revoltas violentas.
Democracias e a liberdade a elas ligadas podem, de fato, trazer alguma (ou até muita) instabilidade até que se consolidem. Mas ninguém inventou nada melhor até agora.
Apesar da suspeita em certos meios ocidentais de que a democracia é incompatível com o mundo árabe/muçulmano, a realidade é outra, como diz a revista "The Economist" no texto de capa de sua edição ora nas bancas:
"A Primavera Árabe, mesmo com todas as suas confusões, ainda se move amplamente na direção correta. Na Tunísia, no Egito e na Líbia, tiranos foram substituídos por governos democráticos. Estes são mais hostis a Israel do que alguns dos ditadores o eram, mas, assim como na Turquia, mais simpatia pelos palestinos reflete a opinião popular (como as democracias tendem a fazê-lo)".
Mesmo que a democracia não tivesse as vantagens conhecidas sobre a tirania, ainda restaria o fato de que ditaduras, até as apoiadas descarada e hipocritamente pelo Ocidente, também estimulam a violência quando lhes convém.
É o que comprovou Jitty Clausen, cientista política dinamarquesa, hoje na Brandeis University, ao investigar a reação no Egito aos desenhos publicados na Dinamarca e considerados ofensivos ao profeta Maomé, um incidente similar aos desta semana, ocorrido em 2005, portanto sob a ditadura de Hosni Mubarak.
O ditador fez campanha contra os desenhos, com dois objetivos: demonstrar os males de uma mídia sem freios, o que acabou levando a uma normativa da Liga Árabe restringindo as televisões por satélite, inclusive a Al Jazeera; e demonstrar aos americanos como era perigosa a Irmandade Muçulmana, então clandestina, hoje no poder.
Parece claro que é um passo adiante lidar com um grupo legitimado pelo voto e que condena o vídeo infame, mas repudia a violência como resposta, do que com um ditador hipócrita que atira a pedra e esconde a mão.
Se prosperar a desconfiança em relação à Primavera Árabe, alguém terminará sugerindo que o Ocidente apoie Bashar Assad. Afinal, na Síria não houve manifestações a propósito do vídeo.
(*) Jornalista é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha de São Paulo
É um equívoco achar que as ditaduras são mais aptas que democracias para evitar distúrbios
A violência antinorte-americana dos últimos dias, no mundo árabe/muçulmano, está levando a uma sensação disseminada -e não apenas nos EUA- de que a chamada Primavera Árabe desandou em flores pouco agradáveis, hostis mesmo.
Os exemplos abundam, mas, por problemas de espaço, cito só um, talvez a melhor síntese, feita por
Bobby Ghosh, na revista "Time": "A Primavera Árabe substituiu a áspera ordem de ditadores odiados pelo florescimento de democracias neófitas. Mas esses governos -com mandatos fracos, lealdades em constante mutação e forças de segurança débeis- transformaram a região em um lugar mais caótico e instável, mais suscetível do que nunca a provocadores vis que fomentam revoltas violentas, usualmente em nome da fé".
A descrição pode até ser apta, mas embute o risco de que se salte para a conclusão de que ditaduras são inerentemente menos caóticas que a democracia e mais capazes de controlar revoltas violentas.
Democracias e a liberdade a elas ligadas podem, de fato, trazer alguma (ou até muita) instabilidade até que se consolidem. Mas ninguém inventou nada melhor até agora.
Apesar da suspeita em certos meios ocidentais de que a democracia é incompatível com o mundo árabe/muçulmano, a realidade é outra, como diz a revista "The Economist" no texto de capa de sua edição ora nas bancas:
"A Primavera Árabe, mesmo com todas as suas confusões, ainda se move amplamente na direção correta. Na Tunísia, no Egito e na Líbia, tiranos foram substituídos por governos democráticos. Estes são mais hostis a Israel do que alguns dos ditadores o eram, mas, assim como na Turquia, mais simpatia pelos palestinos reflete a opinião popular (como as democracias tendem a fazê-lo)".
Mesmo que a democracia não tivesse as vantagens conhecidas sobre a tirania, ainda restaria o fato de que ditaduras, até as apoiadas descarada e hipocritamente pelo Ocidente, também estimulam a violência quando lhes convém.
É o que comprovou Jitty Clausen, cientista política dinamarquesa, hoje na Brandeis University, ao investigar a reação no Egito aos desenhos publicados na Dinamarca e considerados ofensivos ao profeta Maomé, um incidente similar aos desta semana, ocorrido em 2005, portanto sob a ditadura de Hosni Mubarak.
O ditador fez campanha contra os desenhos, com dois objetivos: demonstrar os males de uma mídia sem freios, o que acabou levando a uma normativa da Liga Árabe restringindo as televisões por satélite, inclusive a Al Jazeera; e demonstrar aos americanos como era perigosa a Irmandade Muçulmana, então clandestina, hoje no poder.
Parece claro que é um passo adiante lidar com um grupo legitimado pelo voto e que condena o vídeo infame, mas repudia a violência como resposta, do que com um ditador hipócrita que atira a pedra e esconde a mão.
Se prosperar a desconfiança em relação à Primavera Árabe, alguém terminará sugerindo que o Ocidente apoie Bashar Assad. Afinal, na Síria não houve manifestações a propósito do vídeo.
(*) Jornalista é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha de São Paulo
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