quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Saúde sem educação

Charles Mady (*) 

Muito tem sido dito, escrito e discutido sobre o problema da saúde em nosso país. Opiniões e ideias das mais variadas origens levaram o assunto a longas discussões, algumas procedentes e outras, nem tanto, muitas vezes beirando um amadorismo intelectual perigoso para a formação de opinião de nossa sociedade. É muito fácil colocar preconceitos na mente de um povo necessitado de certos tipos de providências. Portanto, discussões com as mais variadas fontes devem ser divulgadas pela imprensa, na tentativa de informar, e não querer formar opiniões. 

Devemos partir do princípio de que não se conseguirá resolver problemas nesse campo em curto espaço de tempo. A situação tornou-se muito grave pelo descaso, ao longo de décadas, de nossas autoridades, que assumiram e assumem atitudes pontuais e eleitoreiras, que simplesmente servem para demonstrar ao público que algo estaria sendo feito no momento. Não há planos racionais a longo prazo, talvez porque beneficiariam gestões futuras outras que não as atuais, ou por real incompreensão do processo. 

Em qualquer setor da sociedade, mas hoje, principalmente na saúde pública, as soluções deverão passar por um projeto educacional que envolva uma profunda reforma em nossos padrões políticos e universitários. Muito se fala de saúde, mas pouco de educação, como se esta não fosse a chave da solução de boa parte dos infortúnios que hoje nos atingem. Seguramente não teremos saúde de qualidade se não tivermos ensino de qualidade. As autoridades preocupam-se muito com a inclusão de alunos nas universidades, mas não demonstram a mesma preocupação em como esses alunos sairão das escolas médicas. Que estrutura de aprendizado esses jovens têm? Qual é o perfil dos alunos de que necessitamos e deveríamos formar? 

Não devemos esquecer também o que ocorre no ensino público básico, no qual a evasão de docentes por más condições de trabalho e salários baixos levou o setor a uma situação quase trágica. Transportem essas mesmas dificuldades para as universidades públicas, que são infinitamente mais complexas. Muitas faculdades foram criadas sem a visão de que elas deveriam ser algo mais que prédios imponentes, inaugurados com grande alarde, com belos jardins, equipamentos caríssimos de última geração, em searas de determinados interesses políticos. Esquecem-se do fundamental, que é a formação de um corpo docente em condições de construir um curso que capacite seus alunos a trabalhar nas condições que nossa sociedade necessita e merece. Devemos entender que a qualidade dos recursos humanos é fator fundamental, muito mais importante que belos prédios e equipamentos de última geração. 

Visitando algumas delas, observamos que muitos professores frequentam as escolas esporadicamente, morando em outras cidades ou Estados, não tendo, portanto, as mínimas condições de se envolver com as necessidades básicas do corpo discente. São professores "turistas", que dão seu recado pontual e se retiram. E todos os envolvidos com educação sabem que a presença, os diálogos e discussões são fundamentais para que o ensino sedimente na mente desses jovens. Para piorar o quadro, muitos professores ilustres emprestam seu nome para "enriquecer" os quadros docentes dessas escolas, aparecendo apenas em ocasiões especiais e formaturas. Platão, em sua Academia, e Aristóteles, em seu Liceu, entenderam, há milênios, o papel fundamental da interação, a longo prazo, de alunos e professores na educação. Esta não é a simples transmissão de informações, mas sua sedimentação via diálogos com seus tutores e preceptores. Portanto, a presença dos professores é fundamental e o corpo docente deve, em sua base, ser fixo. Métodos como a telemedicina, com educação à distancia, são importantes, mas devem ser encarados como suplementares. 

Para quem trabalha em universidades públicas é doloroso observar a evasão de profissionais em busca de melhores empregos, ou o desinteresse dos que permanecem em atividades acadêmicas pela baixa remuneração e falta de planos de carreira. A proporção de mestres e doutores devidamente pós-graduados é baixa. Basta ver as estatísticas. Para piorar, como se isso fosse ainda possível, boa parte das escolas médicas não tem hospitais que ofereçam residência médica aos recém-formados, fundamental para que possam exercer a profissão com dignidade. Passam a procurar essa formação em grandes centros, que dispõem de número limitado de vagas. Tornam-se estagiários de serviços e hospitais cuja finalidade é o lucro, e não o ensino. A enorme mercantilização da medicina piora ainda mais o quadro, tendo transformado o paciente em meio, e não um fim em si mesmo. Contrariamente à lição de Kant, em sociedades movidas apenas por interesses financeiros os seres humanos têm preço, e não dignidade. 

Numa reforma universitária devidamente conduzida e sustentada, poderíamos dispor de centros de ensino vocacionados para as regiões onde se encontram, com corpos docentes estimulados a lá permanecer, formando profissionais aptos a resolver a maioria dos problemas que afetam as populações que vivem ao seu redor. Seriam médicos com formação geral ampla, para merecerem ser chamados de médicos de família. Havendo necessidade de tratamentos mais especializados, centros maiores deveriam estar disponíveis em todas as capitais. 

Até quando ficaremos à mercê de ideias como importação de profissionais, residência no SUS e tantas outras pontuais, que não resolvem nossos problemas agudos nem abrem perspectivas de soluções para os crônicos? Para isso nossos dirigentes devem encarar com maturidade e vontade política os caminhos para atenuar o sofrimento de quem depende da saúde pública e de todos os que a ela servem. 

Soluções cosméticas não nos levarão a lugar algum. 

(*) Professor associado da Faculdade de Medicina da USP e membro do conselho diretor do Incor.

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