sábado, 26 de outubro de 2013

A classe média vai ao inferno

Ruth de Aquino (*) 

Era uma vez o sonho de morar na grande cidade. O paraíso das oportunidades, do emprego bem remunerado, do hospital equipado e do acesso mais amplo aos serviços públicos. O centro do lazer cultural e do bem-estar. A promessa da mobilidade social e funcional. 

A metrópole virou megalópole e, hoje, São Paulo e Rio de Janeiro se tornaram ambientes hostis ao cidadão de qualquer classe social que precise se deslocar da casa para o trabalho. As “viagens” diárias dificultam conciliar família e profissão. Os serviços públicos são muito ruins. E o transporte coletivo – negligenciado por sucessivos governos como “coisa de pobre” – é indigno. 

Hoje, mais da metade da população (54%) tem algum carro. O Brasil privilegiou a indústria automobilística, facilitou a compra de veículos, e a classe média aumentou em tamanho e poder de consumo. Todos acreditaram que chegariam ao paraíso. Ficaram presos no congestionamento. 

Quem mais fica engarrafada nas ruas é a classe média, segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). A pesquisa, com base em dados de 2012, revela que os muito pobres e os muito ricos gastam menos tempo no deslocamento casa-trabalho do que a classe média. Os ricos, porque podem morar perto do trabalho – sem contar os milionários e os governadores, que andam de helicóptero. Os muito pobres, sem dinheiro para a passagem, tendem a se restringir a trabalhar bem perto de onde moram ou acordam às 4 horas da manhã para evitar congestionamento. Como não se investiu em trem e metrô – muito menos em sistemas inteligentes de transporte –, estouramos os limites da civilidade. E que se lixem os impactos ambientais, a poluição e a rinite. 

Nesse cenário, qualquer falha, incidente, obra, desastre ou atropelamento transforma o caos “normal” em catástrofe. Tombou a carreta? O ônibus atropelou o ciclista? O trem sofreu pane? O bueiro explodiu? O cano estourou? A linha de nosso reduzido metrô enguiçou? O asfalto cedeu? Os motoristas de ônibus pararam por melhores condições? Pronto, não se chega mais a lugar nenhum. Até os atalhos se tornam sucursais do inferno. 


Hordas de passageiros brigam para entrar num vagão, derrubam idosos, não têm cuidado com as crianças e as grávidas. Alguns se transformam em Black Blocs sem máscaras e depredam. Motoristas se fecham e se xingam uns aos outros. Esse cotidiano penoso torna o cidadão ao lado um inimigo, um adversário. É preciso chegar à frente dele, roubar seu lugar. 

Vivemos uma situação de guerrilha urbana diária, provocada pela falta crônica de planejamento e a ausência de investimentos públicos em serviços de qualidade. Governos sucessivos erraram nas prioridades e no modelo de desenvolvimento. Somos o país da improvisação e precipitação. 

“Investir em transporte de massa, em trem e metrô, criar sistemas articulados e decretar o fim do império do automóvel particular é uma providência imediata”, afirma o urbanista Augusto Ivan, nascido em Minas e radicado no Rio. “Quando surgiu, o automóvel era chamado ‘carro de passeio’. Deveria voltar a ser apenas isso. Só assim mudaremos o cenário pavoroso de congestionamento. Precisamos taxar a circulação de carros em áreas mais conflagradas, a exemplo da Inglaterra, que estipulou uma ‘congestion charge’. É simples: ou paga para circular ou não entra.” 

O urbanista e vereador Nabil Bonduki (PT-SP) calcula que, para melhorar minimamente a circulação em São Paulo, “seria preciso retirar 25% dos carros das ruas”. Não dá para fazer isso sem criar um transporte coletivo de qualidade. “Nem falo apenas de unidades de trens, metrôs e ônibus. Mas de um sistema, que inclui até calçadas e iluminação, além de conexão. Um sistema que a população considere seguro e confortável.” A aglomeração excessiva em cidades segregadas, um fenômeno típico de Terceiro Mundo, obriga a longos deslocamentos. “Da porta para dentro de casa, a classe média melhorou muito de vida. Mas o espaço público não acompanhou a melhoria.” 

As grandes cidades brasileiras deixaram de ser cidades há muito tempo, diz o urbanista Luiz Carlos Toledo. “Hoje são conglomerados metropolitanos com problemas estruturais. Nossas grandes cidades estão parando. A ponta do iceberg são os engarrafamentos, mas, como nas montanhas de gelo, o buraco está literalmente mais embaixo, onde passam os canos que nos abastecem de água, retiram o esgoto das nossas casas e recebem as águas pluviais. Tudo isso, e não só a mobilidade, está indo para o buraco pela cegueira dos governantes, pela ganância dos especuladores e por todos nós, que acreditamos que existirá sempre um jeitinho para corrigir esses problemas, ou tempo para uma mudança de rumos.” É o que diz Toledo – e eu assino embaixo. 

(*) Jornalista é colunista da Revista ÉPOCA

2 comentários:

  1. Cara Ruth:

    Bastante providencial e real seu artigo sobre as megalópoles, com destaque para São Paulo, onde resido. Infelizmente, temos eleito administradores da pior qualidade para gerir nossas cidades, principalmente as grandes. Administradores incompetentes e muitas vezes com altos graus de corrupção. Administradores comprometidos com loteamentos de cargos para aliados políticos. Daí a incompetência na gestão de empresas públicas que deveriam planejar e cuidar de setores vitais das cidades, como transportes, por exemplo. Administradores demagógicos e imediatista, bastante letrados (e apenas letrados nisso) na arte do marketing político. Em São Paulo, por exemplo, a atual administração (do PT) pinta faixas nas ruas e nos corredores da cidade, criando corredores para ônibus. aumentam, e fazem uma propaganda enorme disso, a velocidade do ônibus de 20 para 30 km por hora. E fazem um outro escarcéu propagandístico com isso. O governo federal (também do PT) abre mão de quantias imensas de impostos (que poderiam ser aplicados para melhorar os transportes), para que o povo compre carro (em suaves 48/60 prestações). E aí o governo municipal restringe a circulação desses carros. E não melhora os sistema de transportes, arcaico e obsoleto. Pintar faixas nas ruas é fácil. Quero ver melhorarem o sistema de transportes. Idem com relação ao governo estadual (em SP, do PSDB), na mídia por superfaturar obras e vagões do metrô. Talvez, se um preço justo tivesse sido pago, poderíamos ter em São Paulo o dobro de linhas de metrô que temos. Essa é uma parte do triste retrato dos administradores que temos. (Gentil Gimenez)

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  2. O reflexo dessa escolha pelo automovel sao as 3 horas diarias que gasto para transitar entre as zonas leste a oeste de Sao Paulo, e as opcoes que tenho para nao ir de carro sao poucas e bem radicais. Nao vejo como ficar melhor no contexto, a nao ser empreendendo perto de casa, ou entao me mudando para outra cidade.
    Mas ai tenho que considerar outras variaveis que nao estao no meu controle e etc.
    Alexandre

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