Kennedy Alencar (*)
Um eventual segundo mandato da presidente Dilma Rousseff terá a chance de reabrir em termos mais sensatos o debate sobre a ampliação do direito ao aborto no Brasil. Se a presidente chegar a 2014 com um cacife perto do que Lula tinha em 2010, há pessoas no governo que acreditam na possibilidade de desinterdição desse debate.
Na última disputa eleitoral, a petista Dilma Rousseff dependeu bastante dos votos conservadores para derrotar o tucano José Serra. Ainda havia Marina da Silva, então no PV, com um discurso adorado por uma fatia conservadora e religiosa do eleitorado. Não havia outra saída para vencer. Mas isso poderá mudar.
Se a economia se mantiver no caminho do crescimento, ainda que num patamar mais próximo de 3% do que 4% ao ano, haverá condição política para brigas que, pessoalmente, ninguém dúvida que a presidente gostaria de comprar.
Desemprego em baixa, salários em alta, juros menores e algum fôlego para investimentos públicos em infraestrutura dariam a Dilma um escudo político para enfrentar amarras do conservadorismo partidário que sustenta seu governo no Congresso.
Hoje, o governo alega que a discussão do aborto é problema da sociedade, na qual todos os segmentos devem ter direito de expressar suas opiniões, e do Congresso, onde tramitam propostas de ampliação da possibilidade de interrupção da gravidez. Esse argumento é pura enrolação. Desde o governo Lula, o Palácio do Planalto encontrou uma forma de comprar tempo e jogar o problema para o outro lado da praça dos Três Poderes.
Compreende-se que não seja a hora de Dilma travar essa batalha devido à absoluta falta de condições objetivas para uma vitória. Mas se espera que, em algum momento de sua Presidência, a primeira mulher a comandar o Brasil faça algo nesse sentido.
A nomeação de Eleonora Menicucci para a Secretaria Especial das Mulheres é um avanço tático, apesar de ela estar sob fogo cerrado neste momento e, portanto, tomar um cuidado inteligente com as palavras. Sua indicação foi um bom sinal para os defensores de políticas públicas voltadas para mulheres e LGBTs.
Temos um Estado laico. É dever desse Estado tratar a ampliação do direito ao aborto como uma questão de saúde pública porque ela envolve um interesse difuso da sociedade.
Os dados estão aí, como registrou Fernando Rodrigues numa excelente coluna na Folha no sábado de Carnaval (18/02). O chamado aborto de risco, aquele feito em condições inadequadas que ameaça tirar a vida da mulher, é a quarta maior causa de mortes maternas no país e a quinta razão para internações no SUS (Sistema Único de Saúde).
É correto que todas as religiões possam se manifestar livremente para persuadir mulheres a não abortar. Se houver uma mudança na legislação que amplie o direito à interrupção da gravidez, será preciso que a mulher ainda adote uma decisão individual, dolorosa, moral e, para muitos, religiosa. Tomada essa decisão, o SUS deve ampará-la.
Também é correto que todas as religiões se mobilizem para tentar evitar que o Congresso altere a lei. Faz parte do jogo democrático. Mas os verdadeiros líderes políticos devem tomar decisões impopulares e pouco compreendidas no seu tempo. Em 2010, Dilma se rendeu a um debate hipócrita, surpreendentemente estimulado por políticos supostamente iluministas. Tomara que surja a oportunidade de uma discussão em termos mais racionais. A presidente deve isso ao país e à sua própria biografia.
(*) Jornalista , escreve para Folha de São Paulo
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