Bellini Tavares de Lima Neto (*)
Dizem que quem está de fora de uma situação é capaz de enxergar aspectos, tópicos e detalhes do que está acontecendo em condições muito mais claras que os próprios participantes. Pura verdade. E, além de pura, óbvia. É claro. Quem está vivendo a situação, no calor das emoções, envolvido pelo clima do que está acontecendo, tem, naturalmente, sua visão prejudicada, sua percepção reduzida exatamente por esses fatores limitantes todos, a emoção, o calor do momento, o clima do acontecimento em tempo real. Não é por acaso que, em uma competição esportiva, além dos competidores, existe a figura do técnico, do orientador que fica de fora do campo ou da quadra apenas observando o desempenho dos integrantes de sua equipe e orientando, indicando os pontos fracos de seu próprio grupo que tem que ser corrigidos, assim como os do adversário, que tem que ser explorados.
Por maior que seja a nossa capacidade de percepção das situações à nossa volta, são incontáveis as vezes em que, diante da pressão externa, vemos a nossa percepção ser desviada do prumo, desvirtuada da realidade e acabar nos levando a cometer impropriedades até muito graves. Existe um caso registrado em literatura de um militar que foi levado à corte marcial por ter conduzido seu pelotão a uma ação de alta periculosidade, o que levou a maioria a sucumbir. Levado a julgamento marcial o militar não se mostrava absolutamente constrangido, arrependido ou coisa parecida. Ao contrário, sustentava como sustentou até o final do julgamento que havia um ninho de metralhadoras pronto para atacar seu pelotão e, portanto, a única opção era atacá-los antes, como foi feito, mesmo que os resultados tenham sido trágicos. Ele realmente acreditava que tinha enxergado o tal ninho de metralhadoras e, portanto, agiu segundo sua capacidade de percepção, dentro do mais rigoroso e fiel respeito ao que considerou sua obrigação como comandante do pelotão. O seu julgamento ensejou um caloroso debate e o indiciado acabou sendo condenado pelos atos, mas não sem algumas reduções de pena e benefícios pelo fato de a corte ter entendido que a tensão da guerra tinha, realmente, afetado a capacidade de discernimento e avaliação do réu.
O mundo está cheio de exemplos de situações em que a pessoa tem sua capacidade de percepção alterada pelas circunstâncias. O problema e o perigo, no entanto, começam quando se chega perto da fronteira. A fronteira é sempre a área perigosa. E tentadora. Houve um tempo em que o marido traído praticamente tinha o direito de eliminar a mulher e, no julgamento, se utilizava o argumento de que tinha perdido a capacidade de se dominar por conta da violenta emoção. Ainda que o sujeito fosse um desses calhordas que acumulam aventuras e conquistas sem nem tomar muito cuidado. Felizmente, esse tempo passou nos tribunais. Já no cotidiano, no dia a dia...Talvez tenha sido por conta de não resistir à tentação de cruzar a fronteira que se inventou um dispositivo que, apesar de um tanto nocivo à saúde de qualquer comunidade acabou se popularizando de maneira incrível. E parece funcionar perfeitamente. Trata-se do “desculpa aí”. O “desculpa aí” também tem se apresentado, e com sucesso, sob a identidade de “foi mal”. Isso, é claro, entre as camadas gerais e mais comuns da sociedade. Em outros segmentos, tidos como mais refinados, entra em cena em trajes mais formais, muitas vezes precedido de longos discursos. Mas, no fundo, é exatamente a mesma entidade, a mesma instituição. E, com a larga popularização dessas ferramentas, tem sido cada vez mais difícil separar os momentos em que a criatura perdeu sua plena capacidade de percepção, daqueles em que simplesmente dá de ombros, atravessa as cercas e vai em frente, confiante que, se alguma coisa der errado, basta lançar mão do mágico expediente. Aliás, se lançar mão de um “desculpa aí, foi mal”, o efeito é ainda mais seguro e eficaz.
O sujeito, com mais ou menos sutileza, derruba o outro no trabalho sem muita cerimônia e depois, entre polido e descarado, lança um “nada pessoal, hein. É tudo só profissional”. Em outras palavras, “desculpa aí”. O camarada, por qualquer “dá cá aquela palha”, perde a compostura, o que acaba gerando reações tão sem compostura quanto. E tudo se perde no tempo, uma espécie de “foi mal” implícito. O condutor do automóvel quase atropela o pedestre que ia atravessar na faixa, passa pelo desavisado e levanta o braço, o que tanto pode significar um “vai pro inferno, idiota” quanto um “desculpa aí”. Variações sobre o mesmo tema. O “pai da pátria” cede facilmente à tentação de esconder uma verbazinha pública na sua conta esquecida em algum paraíso fiscal e, se apanhado, se sente profundamente arrependido e profere um inflamado e emocionado discurso que, reduzido em sua essência, não é mais que um “foi mal, desculpa aí” em tom solene e impostado. Afinal, funciona ou não funciona? Que o digam os eleitores.
Mas, o que caracteriza, mesmo, a natureza do “desculpa aí”, do “foi mal” e de todas as suas diversas manifestações e formas de expressão é a repetição. Pois é. A coisa nunca fica no primeiro e último pedido. Ela se repete, se repete, se repete, mais ou menos como o ato de tomar as cinzas depois de pular o carnaval. O que fica, então, é uma dúvida indecifrável, um dilema existencial: afinal, será que o sujeito está ou não está de posse de toda a sua capacidade de discernimento e por isso é que acaba fazendo o que, em seguida, lhe trás o arrependimento? Vai ver que é isso, não é?
Então, desculpa aí, tá.
(*) Advogado , morador em S. Bernardo do Campo (SPO).
Escreve para o site O Dia Nosso De Cada Dia - http: blcon.wordpress.com
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