José Nêumanne (*) para O Estado de S.Paulo
O Campeonato Mundial de Futebol, organizado a cada quatro anos pela Fifa, entidade privada com sede na Suíça, é um negócio arquibilionário para quem vive em torno de futebol: jogadores, técnicos, dirigentes, preparadores físicos e outros profissionais do ramo; acionistas, redatores, narradores e comentaristas de imprensa, rádio e televisão; e, sobretudo, os maiorais da entidade organizadora e seus afilhados pelo mundo. Estes inventam a cada torneio novas regras que tornam necessárias obras civis que exigem grandes investimentos: dos estádios à infraestrutura de transportes urbanos e aéreos, além da adaptação da rede hoteleira para atender à demanda de público aos jogos.
Países que dispõem de caixa para cobrir as deficiências de estações metroviárias, aeroportos, vias públicas e outras instalações físicas necessitadas de reforma para abrigar hordas de aficionados por futebol lutam para sediar espetáculos transmitidos pela televisão para plateias de bilhões. Esse tipo de investimento importa divisas para a sede do torneio quadrienal e também gera impostos que ajudam a engordar o erário, o que poderia, se aplicados com decência e critério, melhorar os serviços públicos, sobretudo em áreas essenciais e carentes, como saúde, educação e segurança pública. Em relação a isso, há três controvérsias. A primeira é que nunca sede alguma de uma Copa do Mundo trouxe a lume um relato confiável dos lucros auferidos ao longo do evento. A segunda é que mais arrecadação nem sempre (ou quase nunca?) representa melhora de atendimento em hospitais, aprimoramento da educação, especialmente a básica, nem redução significativa de índices de violência. Se isso foi medido, está mantido sob rigoroso sigilo. E, no caso do Brasil, que aceitou a condição de isentar os beneficiados de impostos, este segundo efeito será nulo.
Este país sediará a Copa de 2014 daqui a três anos e quatro meses. Um ano antes, como ocorre sazonalmente, será testada parte dos equipamentos para os grandes espetáculos num acontecimento de grande repercussão, mas menor alcance do que o Mundial propriamente dito, a Copa das Confederações. Neste momento, estamos no segundo estágio, no qual governantes começam a assumir compromissos que, de início, renegaram. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o ex-governador de São Paulo Alberto Goldman (PSDB) e o prefeito Gilberto Kassab (ainda DEM) juraram de pés juntos que nenhum centavo de dinheiro público seria usado na construção de algum estádio para o torneio.
Os juramentos, feitos e reiterados, já começaram a ser sutilmente abjurados. Lula e Goldman saíram de cena, substituídos por Dilma Rousseff e Geraldo Alckmin. Quem deu o pontapé inicial, não na pelota, mas no traseiro do contribuinte, foi o remanescente do trio, Kassab, sob cuja gestão se anunciou que está em estudos um projeto ardiloso de socorrer o Corinthians na construção de seu estádio em Itaquera para que sirva de palco para a abertura do campeonato. Ao lado de Alckmin, ele ouviu Dilma garantir sexta-feira passada que, sim, o primeiro jogo será no estádio do qual não se conhece sequer projeto de viabilidade.
O trio multipartidário passou por cima de algumas evidências da lógica elementar: nada garante que São Paulo terá mais benefícios do que custos sediando a Copa; a cidade tem estádios demais para atender o Mundial e a agenda futebolística local; e o favorecimento de um clube específico - em detrimento de seus adversários - é acintoso. A excelente drenagem do Morumbi no clássico de domingo deixou claro que o estádio pode ser reformado com relativa facilidade para cumprir as exigências de que a Fifa e sua representante no Brasil (a CBF de Ricardo Teixeira) não abrem mão. Até o Pacaembu, que a Prefeitura por pouco não cedeu em comodato ao mesmo Corinthians, agora beneficiado, e a Arena Palestra Itália, que o Palmeiras está reconstruindo às suas expensas, têm sobre o Piritubão uma vantagem essencial: eles existem. A opção anunciada por Dilma, Alckmin e Kassab de que o jogo inicial será disputado na zona leste equivale à decisão de um diretor de cinema que, precisando de um bebê, incentiva o flerte de um casal para contratar o filho que será gerado, antes sequer de ter início o namoro dos pais. Se vivos fossem, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino teriam de recorrer ao Procon para salvar a honra da lógica que descreveram.
O aval da presidente, do governador do Estado e do prefeito de São Paulo à decisão monocrática de Ricardo Teixeira, presidente da CBF e rei do comitê organizador da Copa no Brasil, só se explica por interesses eleiçoeiros. O Mundial será disputado em ano de eleições e disso querem tirar proveito. Mas, como os três deverão estar em campos políticos opostos nas eleições para governador e presidente em quatro anos e terão de dividir a gratidão do eleitorado (nem sempre tão grato assim) no vale-tudo do marketing eleitoral, pouco importará quem goze da regalia. Importa é que o cidadão pagará as despesas. A conversa fiada de que o contribuinte não bancará o banquete em que se refestelarão os barões do marketing esportivo, dos meios eletrônicos de comunicação de massas e da burocracia federal não o livrará de arcar com o prejuízo, mesmo expulso das arquibancadas pelo alto custo dos ingressos. Relatório insuspeito do Tribunal de Contas da União expõe a carta que os dirigentes da República e dos esportes pretendiam manter escondida na manga: dos R$ 23 bilhões a serem gastos em obras, só R$ 336 milhões ficarão por conta do setor privado, restando 98,5% para o cidadão deixado de fora financiar.
Pelo andar da carruagem, não há garantia de que a Copa de 2014 será disputada neste país sem estádios, aeroportos, vias públicas, hotéis e outros equipamentos exigidos pelos organizadores. Em vez de fazerem o jogo da "cartolagem" só por demagogia barata, Dilma, Alckmin e Kassab seriam mais espertos se saíssem de fininho e devolvessem o mico anunciado à Fifa e à CBF, seus legítimos criadores.
(*) Jornalista, Escritor e Editorialista do "Jornal da Tarde" de São Paulo
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