O Globo
Parte da tradição culinária ibérica, a feijoada virou a receita brasileira por excelência.
É o prato que nos dá identidade, aquele que apresentamos a todo estrangeiro de passagem. Mas a clássica combinação do feijão preto com carnes nasceu no Rio, e é mais consumida aqui. Tinha mesmo que terminar em samba, não é?
Os cozidos de carnes e legumes são milenares, com registros que remetem ao Império Romano. Receitas próximas a da feijoada têm sido cultivadas pelas tradições culinárias de Espanha, Portugal e França; quem nunca devorou um bom cassoulet que atire a primeira pedra. É a partir dessa influência europeia que nasce a nossa feijoada.
Seus primeiros registros — completa, com feijão preto gordo, arroz, couve e farofa — datam do século XIX, no Rio. O folclorista Câmara Cascudo afirma em “História da Alimentação” que ela foi criada para enriquecer a dieta colonial: o feijão magro (que no século XVI era consumido acompanhado de farinha e carne ou peixe seco) deu lugar ao prato preparado à maneira do cozido português, com carnes e legumes.
— De fato, o único prato realmente carioca é a feijoada. Podemos afirmar isso porque os registros mais antigos apontam para o Rio. E o feijão preto sempre foi mais consumido na cidade — afirma o sociólogo Carlos Alberto Dória, autor de “Formação culinária brasileira.” — Outras influências encontradas no Rio não são criações cariocas. O peixe com farinha dos caiçaras, por exemplo, é comum em todo o litoral brasileiro, com pequenas alterações — explica.
E por que o feijão preto é mais consumido no Rio do que no resto do Brasil?
— Nunca encontrei essa explicação nas minhas pesquisas — diz Rosa Moraes, diretora de hospitalidade e gastronomia da rede de universidades Laureate. — É o tipo de coisa que se percebe quando não se é carioca ou não se mora no Rio. No restante do Brasil, outros tipos de feijão são consumidos no dia a dia. Muitas vezes, o feijão preto só vai à mesa na forma de feijoada.
Criada no Rio no fim do período colonial, a feijoada foi alçada a sinônimo de brasilidade pelo Modernismo, que, nas primeiras décadas do século XX, buscou construir uma ideia de nação. Tornou-se, então, uma espécie de alegoria festiva de um Brasil miscigenado.
— A feijoada não nasceu na senzala, como diz o senso comum. Basta pensar que as carnes usadas no prato não eram consideradas “restos” pelos portugueses. Ao contrário, eles não as desprezavam. Mas o ideal modernista fez da feijoada um símbolo da mistura racial brasileira — explica a antropóloga Paula Pinto e Silva.
A analogia é explícita, simples até, mas pouco verdadeira: arroz (contribuição do colonizador branco), feijão com restos de carnes (consumido na senzala pelos escravos) e a farinha (de mandioca, parte da alimentação dos índios). Uma vez criado o mito culinário, difundi-lo não foi difícil. Capital do Brasil por 197 anos, o Rio sempre foi um importante disseminador cultural. Saindo de pequenos restaurantes e pensões cariocas em meados do século XIX, a feijoada rapidamente ganhou o imaginário — e a mesa — brasileiros.
Como a própria personalidade carioca, a feijoada se estabeleceu como um prato festivo e informal. Alguém imagina que ela pudesse ter sido criada em São Paulo?
— O Rio escolheu ser reconhecido como um lugar informal, descompromissado. Por isso, a cultura do chope e dos bolinhos fritos nos botequins. A feijoada está dentro dessa escolha. É uma comida sem cerimônia — reflete Paula Pinto e Silva.
E já que chegamos à bebida, com o que harmonizar uma boa feijoada?
Tradicionalmente, o carioca escolhe entre a cerveja estupidamente gelada e o chope bem tirado. São bebidas descontraídas. Os turistas não hesitam: pedem a caipirinha, formando um manjar “made in Brazil”. Mas não se surpreenda, há sommeliers que indicam espumante para escoltá-la — uma bebida festiva para uma receita idem.
De copo na mão, basta seguir Vinicius (existe símbolo melhor do Rio?), no poema “Feijoada à minha moda”: “Que prazer mais um corpo pede/Após comido um tal feijão?/Evidentemente uma rede/E um gato para passar a mão.”
Parte da tradição culinária ibérica, a feijoada virou a receita brasileira por excelência.
É o prato que nos dá identidade, aquele que apresentamos a todo estrangeiro de passagem. Mas a clássica combinação do feijão preto com carnes nasceu no Rio, e é mais consumida aqui. Tinha mesmo que terminar em samba, não é?
Os cozidos de carnes e legumes são milenares, com registros que remetem ao Império Romano. Receitas próximas a da feijoada têm sido cultivadas pelas tradições culinárias de Espanha, Portugal e França; quem nunca devorou um bom cassoulet que atire a primeira pedra. É a partir dessa influência europeia que nasce a nossa feijoada.
Seus primeiros registros — completa, com feijão preto gordo, arroz, couve e farofa — datam do século XIX, no Rio. O folclorista Câmara Cascudo afirma em “História da Alimentação” que ela foi criada para enriquecer a dieta colonial: o feijão magro (que no século XVI era consumido acompanhado de farinha e carne ou peixe seco) deu lugar ao prato preparado à maneira do cozido português, com carnes e legumes.
— De fato, o único prato realmente carioca é a feijoada. Podemos afirmar isso porque os registros mais antigos apontam para o Rio. E o feijão preto sempre foi mais consumido na cidade — afirma o sociólogo Carlos Alberto Dória, autor de “Formação culinária brasileira.” — Outras influências encontradas no Rio não são criações cariocas. O peixe com farinha dos caiçaras, por exemplo, é comum em todo o litoral brasileiro, com pequenas alterações — explica.
E por que o feijão preto é mais consumido no Rio do que no resto do Brasil?
— Nunca encontrei essa explicação nas minhas pesquisas — diz Rosa Moraes, diretora de hospitalidade e gastronomia da rede de universidades Laureate. — É o tipo de coisa que se percebe quando não se é carioca ou não se mora no Rio. No restante do Brasil, outros tipos de feijão são consumidos no dia a dia. Muitas vezes, o feijão preto só vai à mesa na forma de feijoada.
Criada no Rio no fim do período colonial, a feijoada foi alçada a sinônimo de brasilidade pelo Modernismo, que, nas primeiras décadas do século XX, buscou construir uma ideia de nação. Tornou-se, então, uma espécie de alegoria festiva de um Brasil miscigenado.
— A feijoada não nasceu na senzala, como diz o senso comum. Basta pensar que as carnes usadas no prato não eram consideradas “restos” pelos portugueses. Ao contrário, eles não as desprezavam. Mas o ideal modernista fez da feijoada um símbolo da mistura racial brasileira — explica a antropóloga Paula Pinto e Silva.
A analogia é explícita, simples até, mas pouco verdadeira: arroz (contribuição do colonizador branco), feijão com restos de carnes (consumido na senzala pelos escravos) e a farinha (de mandioca, parte da alimentação dos índios). Uma vez criado o mito culinário, difundi-lo não foi difícil. Capital do Brasil por 197 anos, o Rio sempre foi um importante disseminador cultural. Saindo de pequenos restaurantes e pensões cariocas em meados do século XIX, a feijoada rapidamente ganhou o imaginário — e a mesa — brasileiros.
Como a própria personalidade carioca, a feijoada se estabeleceu como um prato festivo e informal. Alguém imagina que ela pudesse ter sido criada em São Paulo?
— O Rio escolheu ser reconhecido como um lugar informal, descompromissado. Por isso, a cultura do chope e dos bolinhos fritos nos botequins. A feijoada está dentro dessa escolha. É uma comida sem cerimônia — reflete Paula Pinto e Silva.
E já que chegamos à bebida, com o que harmonizar uma boa feijoada?
Tradicionalmente, o carioca escolhe entre a cerveja estupidamente gelada e o chope bem tirado. São bebidas descontraídas. Os turistas não hesitam: pedem a caipirinha, formando um manjar “made in Brazil”. Mas não se surpreenda, há sommeliers que indicam espumante para escoltá-la — uma bebida festiva para uma receita idem.
De copo na mão, basta seguir Vinicius (existe símbolo melhor do Rio?), no poema “Feijoada à minha moda”: “Que prazer mais um corpo pede/Após comido um tal feijão?/Evidentemente uma rede/E um gato para passar a mão.”
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