domingo, 30 de janeiro de 2011

Fantasmas urbanos

Luiz Caversan (*)

Na penumbra, parece até gente. Quer dizer, quase gente, gente parada, estática, que não se sabe se está indo ou voltando.
Foi assim que as vi pela primeira vez, aquelas quatro figuras paradas no meio da praça Marechal Deodoro, região central de São Paulo, pertinho aqui de casa.

A primeira impressão, juro, foi a de que tratava-se de apenas mais uma turma de fumadores de crack, que aos bandos zanzam pela região, depois que a municipalidade resolveu dar seguidas blitze na chamada cracolândia, que fica a mais ou menos uns três quilômetros daqui.
Não eram fumadores de crack em surto paralisante, não, eram estátuas mesmo. Ou esculturas, encomendadas e instaladas na antigamente bela praça Marechal Deodoro pelo sindicato dos trabalhadores em empresas de serviços de conservação e limpeza, numa homenagem a esses bravos profissionais.
Assim é que desde o dia do aniversário de São Paulo ali estão, perpetuados em bronze dourado, o gari, a mulher do cafezinho, a moça da limpeza e o jardineiro, todos em "pose" de trabalho e em tamanho natural.

Achei bacana a homenagem, mesmo porque, para que ela ocorresse, deram também um trato na praça, removendo a sujeira acumulada e embelezando os jardins com plantas floridas. Teve até um show no dia da inauguração.
Mas toda vez que agora passo pela praça, sinto um ligeiro mal estar: peças tão bem tratadas e no entanto cercadas, em todo o entorno, de gente tão destruída, arrasada, deteriorada, se é que se pode dizer isso de gente consumida pelo crack.

Farrapos enrolando restos de humanidade.
Assim como a praça e as estátuas, esses indigentes se abrigam sob a imensidão do elevado Costa e Silva, o famigerado Minhocão, e ali depositam e purgam e expõe suas desgraças.

Durante o dia, dormem esparramados em qualquer lugar, à noite tornam-se zumbis alucinados em busca de alguma coisa que a droga coloca na sua frente como um objetivo inalcançável, tornando sua loucura, além de abjeta do ponto de vista da saúde pública, a um só tempo comovente e apavorante.
São fantasmas urbanos que às dezenas se espalham pela área, sub-cidadãos desclassificados e sem destino ou rumo, perdidos num delírio desesperado.

Querem acabar com a cracolândia sem acabar com o crack ou sem dar destino aos fumadores, como?
Eles não têm para onde ir, não sabem o que fazer, não têm como sair do buraco gosmento em que se meteram.

Precisam de ajuda, que não vem ou é insuficiente.
Num certo sentido, as assépticas estátuas do "pessoal da limpeza" que agora lhes fazem companhia meio que simbolizam sua sujeira e sua presença incômoda.

Um, mais um, triste paradoxo dessa cidade que tenta se reinventar, mas não consegue...

(*) Jornalista, produtor cultural e consultor na área de comunicação corporativa da Folha de São Paulo.

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