domingo, 22 de agosto de 2010

Pedindo licença ao sr. William

Bellini Tavares de Lima Neto (*)

Algumas correntes religiosas ou esotéricas defendem o postulado de que nada nas nossas vidas acontece por acaso. E, partindo dessa afirmativa surgem diferentes variáveis.
Para alguns, trata-se de algo como um destino inexorável contra o qual não há forças que se contraponham. Essa é uma visão que corre o risco de se tornar fatalista e de não criar incentivos a que o individuo busque seus sonhos e expanda seu universo. Afinal, se esse “nada acontece por acaso” for lido como “tudo já está devidamente traçado”, de fato vai sobrar exatamente nada que comporte a intervenção do homem.
É sentar-se e aguardar que tudo aconteça como deve ser e pronto. Equivale a dizer que somos marionetes atadas aos cordões manipulados por alguém superior e que não se sente obrigado a dar explicações aos conduzidos.
Será isso, mesmo?

Mas, essa mesma perspectiva de que nada acontece por acaso também pode ser vista como a mais fiel tradução da perspectiva de que, de tudo se pode tirar uma lição e tudo é suficientemente importante para merecer a nossa atenção, a nossa reflexão e o nosso aprendizado. Um simples tropeção na calçada pode estar nos sugerindo que, ou se deve prestar mais atenção onde se pisa ou está na hora de se organizar um movimento cívico para protestar contra o péssimo estado do calçamento e a necessidade de as autoridades resolverem o que pode ser um problema da maior seriedade. Não há nada de fatalista ou de pré-determinado nisso. Há, apenas, o conteúdo de cada situação, de cada experiência, de cada episódio que vivemos ou observamos. E esse conteúdo se torna uma espécie de mola propulsora para que se avance no caminho do nosso próprio refinamento. Afinal, quem anda prestando atenção por onde passa evita levar um tombo bem no meio da rua. E se for uma daquelas ruas movimentadas, além da dor da queda, o que é o mínimo, ainda vai se tornar objeto da gozação geral, o que é de doer e muito mais.

Dia desses estivemos, a parceira e eu, numa cerimônia não muito freqüente, realizada por duas organizações diferentes. Uma delas é uma instituição dedicada à inclusão, na sociedade e no mercado de trabalho, de jovens com algum tipo de necessidade especial ou restrição (tomando-se, aqui, a palavra em seu sentido mais convencional e menos expressivo). A outra era uma grande empresa que vive na mídia em geral e costuma ser alvo de muitas polêmicas, embora, no caso em particular, tenha mostrado uma faceta admirável ao se envolver no projeto com a primeira.
Sob o ponto de vista simplesmente tradicional ou convencional, a cerimônia não apresentava nenhum atrativo especial ou nenhuma dessas grandiosidades que normalmente se procura emprestar a qualquer evento.
Trata-se apenas de uma entrega de diplomas simbólicos a um grupo de jovens filiados à instituição dedicada à inclusão por terem sido o primeiro grupo a se submeter a um programa de treinamento visando, exatamente, essa inclusão no mercado de trabalho e na sociedade em geral.

No entanto, deixando de lado os aspectos sociais mais convencionais, a cerimônia acabou se tornando um espetáculo de emoção e de otimismo. Aqueles jovens, cada um com suas características próprias, estavam ali aceitando o desafio gigantesco de enfrentar a sociedade e todas as suas mazelas em troca de um bem muito mais valioso que qualquer outro: o prêmio de viver e, com isso, sentir, amar, produzir e reproduzir. Dar, enfim, sua parcela de contribuição à dinâmica da vida, a responsável pela perpetuação de tudo. Pode haver causa mais entusiasmante?
Dentre todos (e todos mereceram destaque, todos foram dignos de nota) um em particular talvez pudesse representar condignamente toda aquela garra, todo aquele destemor, toda aquela energia vital acesa e em chamas.

Trata-se de um dos meninos, vinte e poucos anos, portador de uma acentuada deficiência visual. Era um dos diplomandos. Ao seu lado, uma jovenzinha portadora de uma expressão facial que retratava toda a doçura, toda a meiguice que se pode esperar de um anjo.
Ela, mais do que ele, não conta com o sentido da visão. E os dois, distribuindo sorrisos e ternura, foram se aproximando dos companheiros, cumprimentando e sendo cumprimentados, comentando sobre o trânsito e o acesso até o local.
Sem restrições, sem deficiências. E um dos orientadores da organização comentou: “Eles são muito apaixonados. Ele leva essa menina a todo lugar e cuida dela com um amor que é de impressionar”.

Seus nomes não vêm ao caso. Poderiam se chamar Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, qualquer desses emblemáticos casais apaixonados que ganharam as galerias da história por conta de um amor maior e sublime. Serão sempre assim? Só o tempo poderá dizer.
Mas, quem garante que Romeu e Julieta se manteriam fieis um ao outro e apaixonados para sempre se a tragédia não os tivesse colocado num patamar acima da realidade e do cotidiano? E, enfim, que diferença isso faz?
Quantas dimensões de tempo poderão existir nesse universo infinito e interminável?
O nosso casalzinho lá estava esbanjando carinho, afetuosidade.

E eu saí em busca de um pedaço de papel onde pudesse registrar um pensamento que me bateu forte, diante daquele espetáculo de esplendor humano, uma dessas lições gratuitas que nos são oferecidas e que só exigem que se mantenha sempre alerta a atenção para elas: a vida vai muito além do que as nossas vãs convenções sociais podem alcançar.

(*)  Advogado, agora avô e morador em São Bernardo do Campo (SPo)

      Escreve para o site O Dia Nosso De Cada Dia - http: blcon.wordpress.com

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