sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A fraude sem precedentes

Celso Arnaldo Araújo (*)

A cobertura do debate no UOL consolidou a certeza de que a grande mídia desistiu solenemente de destrinchar — se é que um dia se dedicou a isso — o conteúdo pastoso e espantoso da fala de Dilma, limitando-se a comentar sua postura e sua desenvoltura, que aparentemente, e apenas aparentemente, tiveram um leve upgrade, desde o assustador debate da Band, pela influência de seus múltiplos marqueteiros.

Apesar do treinamento intensivo, confrontada com qualquer questão nacional Dilma ainda soa, no conjunto da obra, como uma fraude sem precedentes na história das candidaturas presidenciais. Mas, segundo os analistas, teria aprendido a fazer isso olhando para a câmara certa e com menos tartamudeios. Ok, deixou de ser uma tragédia (Band) para ser apenas um desastre (UOL). Nenhuma palavra sobre o conteúdo de suas falas.
O fato é que Dilma continua, com sua sintaxe monstruosa, mentindo, tergiversando, embromando, empulhando, adulterando dados, conceitos, propostas, análises – diante da mais absoluta inação dos jornalões.

Pegue-se apenas a resposta de Dilma à pergunta de um internauta sobre a questão do aborto (bloco 4 do debate do UOL, está no portal UOL). O tema não está no topo das prioridades de um novo governo, mas é assunto delicado, que, quando trazido à baila, exige de um candidato à Presidência da República uma formação técnica e humanista razoável para não parecer fariseu, demagógico ou defender o indefensável e o inviável.
Qual foi a resposta de Dilma no debate da UOL? Claro: uma sandice curetada por um desconhecimento visceral do tema. Não por arranhar valores morais, não por afrontar dogmas religiosos. Mas porque, ao fim da resposta, é virtualmente impossível saber que contribuição ela tem a oferecer à problemática do aborto como política de governo – tenho para mim que ela não tem a menor noção sobre o que dizer ou propor sobre o aborto, apenas embaralha fragmentos de um fraseado que um dos marqueteiros lhe passou.

O que disse sobre o aborto a mãe cuidadora em cujas mãos Lula quer depositar o país – com Michel Temer, e seu ginecológico PMDB, de plantão na neonatologia pronto para embalar o seu?
“Eu não acredito que tenha uma mulher que seja favorável ao aborto”, começa o tatibitate de Dilma no UOL.
Ela normalmente diz, quando aborda o assunto, que nenhuma mulher “quer” fazer aborto. “Ser favorável” dá no mesmo. Na verdade, a imensa maioria das mulheres que fazem aborto desejam fazer aborto: por uma série de razões, são favoráveis a ele – ou não infringiriam a lei para fazê-lo. O que Dilma tenta dizer, em sua falência semântica, é que nenhuma mulher “gosta” de fazer aborto. E isso é óbvio.


Prossegue:
“São situações que as mulheres recorrem ao desespero (…). As mulheres pobres fazem, estão desesperadas, recorrem a agulhas de tricô, a chás, e são aquelas que vão pras filas ou pra momentos de extremo risco de vida procurá em última instância um tratamento num hospital, uma curetagem, algo assim”.

Dilma um dia ouviu e gostou dessa história de agulha de tricô – frequentemente repete isso. Até aborteiras de fundo de quintal já usam métodos mais eficientes – embora não menos brutais. E não dá para colocar agulhas e chás no mesmo balaio do desespero. Quem toma um chá para interromper uma gravidez não está desesperada.

A verdade é que Dilma nunca ouviu falar em Cytotec, um medicamento indicado inicialmente contra úlcera gástrica que se revelou potentemente abortivo e que, proibido no Brasil para venda livre, hoje restrito a hospitais credenciados, circula clandestinamente em todo o país, com oferta abundante. O governo Lula fez muito pouco para coibir o livre trânsito de Cytotec.
Cytotec não é agulha de tricô ou chá da vovó: bebem-se dois ou três comprimidos com um copo d´água, a frio, sem açúcar. Horas depois, o medicamento dá início a um tsunami de contrações uterinas. Para completar a ação abortiva, um ou dois comprimidos são introduzidos pela vagina. O problema é que nem sempre a ação é completada. É um aborto sangrento, expulsivo, que muitas vezes precisa ser completado na rede pública de saúde, para salvar a mãe – o embrião, a esta altura, já terá sido expelido nas primeiras contrações, mas às vezes ali permanece, aos pedaços. Pior: em cerca de 10% dos casos, a gravidez continua – com um altíssimo risco de malformação congênita, sobretudo a chamada Síndrome de Moebius.

O que fará Dilma sobre isso, se eleita, e ao longo de oito anos de governo? Evidentemente nada. Nunca mais tocará no assunto enquanto presidente. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o risco de morrer em um aborto nos países onde ele é permitido e feito por médicos é de 1 em 1 milhão. No Brasil, a proporção está em 1 para cada 100 mil casos – mil vezes mais alto. Isso continuará, exatamente assim, no governo Dilma – e, justiça seja feita, ela provavelmente nem teria força ou poder para mudar isso num país religioso como o nosso. Então poderia ter respondido como mulher – não como candidata.

Por que finge ter a solução para os abortos clandestinos no Brasil? Por que é tão demagógica com uma questão que envolve pelo menos duas vidas?
Alguém acredita que Dilma, quando presidente, vai tentar mudar a lei para permitir o aborto na rede pública ou privada fora das duas situações hoje constitucionalmente autorizadas? Nesse caso, estaria propondo um programa de saúde pública para as mulheres que não “são favoráveis ao aborto”? Sim, porque as mulheres de Dilma, como você sabe, nunca são favoráveis ao aborto.

Mas o melhor de Dilma no debate da UOL ainda estava por vir.
“Acho que o Brasil tem de ter uma política de saúde que permita à mulher menos protegida, e a seu filho, no caso dela recorrer ao aborto, né, e seus filhos serem protegidos da perda da mãe também…”
Perceberam? Dilma ia cometendo um desatino que, por si só, seria desclassificatório de uma candidatura presidencial: se a mulher precisar recorrer ao aborto, o Brasil tem de ter uma política de saúde que proteja seu filho…Como? Um aborto que poupe o feto? Seu neurônio solitário, até ele, se deu conta da sandice populista e ilógica e ela imediatamente tentou consertar – da pior maneira possível: “…e seus filhos serem protegidos da perda da mãe também”..

Ninguém percebeu, ninguém comentou o rematado despautério. Parece que já tratam Dilma com a reverência reservada à primeira presidente deste país.

Ela fez por merecer? Ou melhor: o Brasil merece mãe Dilma?

(*) Jornalista e atua ne Revista VEJA

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